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Artigo: Informatização dos registros públicos – Por Kiyoshi Harada

É desejável que o Congresso Nacional, no projeto de lei de conversão, expurgue as inovações introduzidas ao art. 54 da lei 13.097/15, para restabelecer a segurança jurídica, bem como, resguardar o direito de crédito do legítimo credor contra a astúcia do devedor. A MP 1.085, de 27/12/21, dispõe sobre Sistema Eletrônico dos Registros Públicos – SERP – de que trata o art. 37 da lei 11.977, de 7/7/09, que alterou a lei de Registros Públicos, lei 6.015, de 31/12/73. Trouxe, sem dúvida alguma, inovações altamente positivas à altura do desenvolvimento tecnológico do país na área da informática, que tende a substituir trabalhos físicos pela inteligência artificial. Lembro-me do início da década de 60, quando passei a atuar nos escritórios de contabilidade.Tudo era demorado. Para efetuar o registro de um documento no cartório de registro de imóveis era preciso fazer um requerimento assinado com firma reconhecida e dirigir-se a um dos Cartórios Distribuidores que apontava o cartório de registro competente. A fila para reconhecer firma era um pesadelo. A exigência da formalidade do reconhecimento de firma era geral, apesar, de todos saberem que essas firmas eram reconhecidas mediante aposição automática de um carimbo. Quando estávamos no 2º ano de Direito, 1964, fizemos um teste: firmamos um documento em nome do Imperador Dom Pedro I. Levamo-lo ao 24º Tabelião que mediante carimbo de praxe prontamente reconheceu a firma daquele 1º Imperador do Brasil. O Presidente Costa e Silva, quando assumiu o poder, aboliu o reconhecimento de firmas que, entretanto, permaneceu em relação a documentos direcionados a registros públicos por interesses meramente financeiros dos notários e tabeliães. Passados mais de 60 anos vem à luz esse diploma moderno e inovador que dispensa a presença física nas repartições de registros públicos que se intercomunicam entre si para fornecer, por exemplo, uma certidão de filiação vintenária em tempo real. O atendimento, o envio e recepção de documentos é tudo feito por via remota por intermédio da Internet. Os objetivos do SERP estão alinhados nos onze incisos do art. 3º, dentre os quais, o armazenamento de dados eletrônicos, a divulgação de índices estatísticos apurados a partir de dados fornecidos por oficiais de registros públicos e a consulta que permite verificar as indisponibilidades decretadas pelo Judiciário e os gravames legais e convencionais incidentes sobre os bens imóveis. Em síntese, a nova ordem legal permite a) o atendimento remoto dos usuários de todas as serventias; b) a interconexão das serventias dos registros públicos; c) a visualização eletrônica de dados transcritos, registrados ou averbados; d) o intercâmbio de documentos e informações. A adesão ao SERP dos oficiais de registro público de que cuida a lei 6.015/73 é obrigatória. O SERP é custeado por um Fundo de Implementação e Sistema Eletrônico dos Registros Públicos – FICS – subvencionado por oficiais de registros públicos. O SERP terá um operador nacional sob forma de pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, nos termos estabelecidos pela Corregedoria Nacional de Justiça e do Conselho Nacional de Justiça. Além da alteração legislativa de início apontada, várias outras leis sofreram modificações para compatibilizar a ordem jurídica global com as disposições da nova lei. Assim, foram alteradas as disposições da lei 4.591/64 (incorporação imobiliária); da lei 6.766/79 (parcelamento do solo urbano); da lei 8.935/94 (regulamenta o art. 236 da CF pertinente a serviços notariais e de registro público); da lei 10.406/2002 (Código Civil); da lei 11.977/19 (dispõe sobre “Minha Casa, Minha Vida”); da lei 13.097/15 (pacote tributário que semeia o caos na legislação tributária); e da lei 13.465/17 (dispõe, sobretudo, sobre regularização fundiária e urbana). O instrumento normativo sob comento, sem dúvida, trouxe benefícios inegáveis aos usuários em geral economizando distâncias e tempo, itens que oneram os custos de mercadorias e de serviços. Contudo, nem tudo é mar de rosas. O legislador palaciano, incursionando no campo do direito processual civil, com o manifesto propósito de prestigiar o princípio da concentração dos atos na matrícula do imóvel, por meio de seu art. 16 alterou a redação do art. 54 da polivalente lei 13.097/15 acrescentando-lhe dois parágrafos, in verbis: “§ 1º. Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no registro de imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto no arts. 1291 e o art. 1302 da lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção de propriedade que independam de registro de título de imóvel” “§ 2º. Não serão exigidos para validade ou eficácia dos negócios jurídicos a que se refere o caput ou para a caracterização da boa-fé do terceiro adquirente de imóvel ou beneficiário de direito real: I – a obtenção prévia de quaisquer documentos ou certidões além daqueles requeridos nos termos do disposto no § 2º3 do art. 1º da lei 7.433, de 18 de dezembro de 1985; II – a apresentação de certidões forenses ou de distribuidores judiciais” Esses parágrafos acrescidos, claramente, estabelecem uma presunção de boa-fé do adquirente de imóvel na pendência de execução contra o alienante. É claro que não se trata de presunção iuris et de iuris, mas, imputa ao credor prejudicado o ônus da prova de má-fé do adquirente. A nova ordem legal dispensa quaisquer certidões que não sejam aquelas referidas no § 2º, ou seja, dispensa as certidões forenses e outras certidões como as de averbação da penhora, da instituição de ônus real etc. Ora, essa situação não se harmoniza com o art. 792 do CPC que considera fraude à execução a alienação ou oneração de bens: “I – quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver; II – quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução, na forma do art. 828; III – quando tiver sido averbado, no registro do bem, hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude; IV – quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência; V – nos demais casos expressos em lei.” “§ 1º A alienação em fraude à execução é ineficaz em relação ao exequente. § 2º No caso de aquisição de bem não sujeito a registro, o terceiro adquirente tem o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem.” De conformidade com o § 2º cabe ao terceiro adquirente comprovar a sua boa-fé na aquisição de bens não sujeitos a registro, mediante certidões pertinentes obtidas no local do bem e no local do domicílio do vendedor. Nos termos de súmula 375 do STJ o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova da má-fé do terceiro adquirente. À toda evidência a MP 1085/21, nesse particular, representa um retrocesso legislativo a provocar demandas judiciais em torno de assunto que já estava pacificado. Outrossim, estimula a ação do adquirente de má-fé para prejudicar o credor, inclusive, por meio de ato simulado entre vendedor e adquirente com pseudas transferências ou falsas instituições de ônus reais. Inverteu-se o ônus da prova. Agora, cabe ao credor prejudicado fazer a prova de que o adquirente agiu de má-fé. A MP 1085/21 discrepou do art. 792 do CPC, mas, nenhuma referência fez em relação a esse estatuto processual, ao contrário das normas de outras leis que foram expressamente alteradas. É o caso de indagar se a disposição da lei específica (MP 1.085/2021) revogou a norma da lei genérica. Aplica-se, a nosso ver, o disposto no § 2º, do art. 1º da LINDB: “§ 2º. A lei nova que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior”. Cabe ao Poder Judiciário dirimir o conflito de normas à luz do citado § 2º, do art. 1º da LINDB. É desejável que o Congresso Nacional, no projeto de lei de conversão, expurgue as inovações introduzidas ao art. 54 da lei 13.097/15, para restabelecer a segurança jurídica, bem como, resguardar o direito de crédito do legítimo credor contra a astúcia do devedor que frauda a execução caracterizadora de ato atentatório à dignidade da justiça e, também, de crime capitulado no art. 179 do Código Penal. Fonte: Migalhas