No início de 2021, o dogecoin, “criptomoeda-meme” lançada como sátira do bitcoin, valia menos de US$ 0,01. Quatro meses depois, no dia 8 de maio, seu preço chegou a US$ 0,69 — uma valorização de espantosos 7.000%, grandeza extravagante que, para fins de comparação, equivale ao rendimento acumulado desde 1988 pelo S&P 500, índice que registra o preço das 500 ações de maior capitalização negociadas nas bolsas de valores dos Estados Unidos. Agora imagine a seguinte situação: naquele mesmo dia 8 de janeiro, uma sexta-feira, Semprônia e Tício celebram contrato de permuta por meio do qual Semprônia se compromete a transferir a propriedade de seu apartamento para Tício em troca de 10 milhões de dogecoins (que valiam, então, aproximadamente US$ 100 mil, ou R$ 550 mil). Como aquele era um dia particularmente atribulado para ambos, os contratantes decidem deixar o registro do negócio para segunda-feira, quando, de resto, o movimento no ofício de registro de imóveis de sua cidade costuma ser bem menor. Podemos imaginar vários desfechos para essa história. No mais simples e otimista deles, o negócio é concluído na segunda-feira nos termos acordados, a despeito da já então significativa valorização do dogecoin. Em um desenlace mais complicado, no entanto, Tício deixa de atender as ligações de Semprônia, que, depois de inúmeras tentativas de contato, decide executar a permuta. Mas já estamos no começo de maio, quando, eventualmente, os mesmos 10 milhões de dogecoins devidos por Tício poderiam ser trocados por nada menos que 70 apartamentos como o de Semprônia. Como se pode imaginar, a disciplina jurídica de negócios envolvendo criptoativos não é nada óbvia, e parece se tornar mais urgente a cada dia. Criptoativos como o dogecoin (mas também o bitcoin, o ether e um sem-número de tokens menos conhecidos) circulam através de redes computacionais próprias, as blockchains. Sua tecnologia vem chacoalhando o mercado financeiro desde 2009, e já há alguns anos se expande sobre outras práticas e instituições, incluindo os negócios imobiliários. É no contexto dessa expansão que a Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) editou, em novembro último, o Provimento 38/2021, que regulamentou “a lavratura de escrituras públicas de permuta de bens imóveis com contrapartida de tokens/criptoativos e o respectivo registro imobiliário pelos Serviços Notariais e de Registro do Rio Grande do Sul”. O regulamento impõe aos contratantes o ônus de declarar que “reconhecem o conteúdo econômico dos tokens/criptoativos objeto da permuta, especificando no título o seu valor” — valor este que, ainda de acordo com o provimento, deve guardar “razoável equivalência econômica em relação à avaliação do imóvel permutado”. O texto infelizmente gera mais perguntas que respostas. Criptoativos nem sempre têm um “conteúdo econômico” inequívoco. Deixando de lado as questões semânticas, que não são irrelevantes, o “conteúdo econômico” mais evidente de um criptoativo — seu preço — não pode ser definido da mesma forma que, digamos, o valor de um imóvel ou uma taxa de câmbio. Os mesmos criptoativos podem ser negociados por grupos segregados de compradores e vendedores em diferentes exchanges, que estabelecem, por isso, diferentes cotações. E os preços dos criptoativos, e isso também vale para moedas bem mais caras e difundidas como bitcoin e o ether, continuam sendo muito, muito mais voláteis que os preços dos ativos tradicionais. Este último ponto precisa ser bem entendido. Em química, volatilidade é um conceito que descreve a velocidade com que uma substância passa do estado líquido para o estado gasoso. De maneira análoga, a palavra indica, no campo das finanças, a rapidez com que os preços de um ativo se movem. Em mercados de alta liquidez, ativos mais voláteis podem trazer ganhos significativos de curto prazo, mas também expõem seus titulares a grandes perdas. A volatilidade se transforma, assim, em medida de risco. E é como medida de risco que passa a ser calculada e regulada, ainda que suas regularidades não sejam naturais, mas institucionais. Mas variações de preço podem ter diferentes significados em diferentes contextos. A variação do preço de um NFT (ou token não fungível), por exemplo, não tem o mesmo significado da variação do preço de uma criptomoeda como o bitcoin. Essas nuances ajudam a entender por que níveis elevados de volatilidade não costumam ser bem-vindos em contratos comuns. Quem adquire um imóvel age por razões diferentes daquelas que movem pessoas que, digamos, acumulam dogecoins. Não é possível aferir a “razoável equivalência econômica em relação à avaliação do imóvel permutado” determinada pelo provimento sem atentar para isso. O provimento da corregedoria do TJRS acerta ao restringir o seu escopo aos contratos de permuta envolvendo propriedade imobiliária — sem tratar, por exemplo, da chamada tokenização de imóveis, como equivocadamente se noticiou. Mas deixa de avançar naquilo que lhe cabia especificamente: a definição de parâmetros de precificação que mitiguem os riscos de perdas ou ganhos desproporcionais para uma das partes — o velho e sempre novo problema da justiça das trocas, agora repaginado pela tecnologia blockchain. É importante e desejável que o Judiciário esteja aberto a inovações tecnológicas. Nesse sentido, a iniciativa da corregedoria do TJRS é louvável. Mas não podemos ignorar que imprecisão regulatória pode ser mais prejudicial do que a omissão do Estado. O enfrentamento de problemas graves como fraudes, pirâmides financeiras e esquemas de lavagem de dinheiro passa pelo tratamento jurídico adequado dos riscos trazidos pela elevada volatilidade de diferentes criptoativos. Fonte: Jota