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Artigo: Entendendo o Princípio da Cindibilidade Registral (Parte I) – Por Marcel Edvar Simões e Felipe Bizinoto Soares de Pádua

1. Considerações iniciais Em um país como o Brasil, que é dotado de vasto espaço geográfico e que tem na sua Constituição (art. 170) a adoção do sistema econômico capitalista, as questões imobiliárias apresentam-se em profusão, e sempre com papel de destaque. Apesar do plano social atualmente manifestar um vasto campo caracterizado pela imaterialidade (créditos, ações, marcas, patentes, os sítios eletrônicos), os imóveis ainda ocupam entre nós um espaço central no horizonte de importância jurídica (e que não deixa de se relacionar, também, com sua importância econômica, social e cultural nada desprezível). De uma forma mais ampla é que o ordenamento legal divisou, por meio das leis 6.015/73 (LRP) e 8.935/94, a atividade extrajudicial sustentada no art. 236 da Lei Fundamental brasileira, sob a bipartição fundamental em atividades notariais, de um lado, e registrais, do outro. É dentro dessa segunda área que estão os Oficiais de Registro de Imóveis, de Títulos e Documentos, de Pessoas Naturais e de Pessoas Jurídicas. Como já referido, e é de conhecimento amplo, toda essa atividade registral encontra amparo central na lei 6.015, que cuida do sistema brasileiro de Registros Públicos. O que importa aqui destacar é que essa metadisciplina jurídica, a do Direito Registral, é recheada de normas-princípios, particularmente pela proximidade – quanto ao exercício do munus público – com o regime jurídico público1. E, dentre os vários princípios habitualmente identificados no quadrante do Direito Registral, merece atenção (talvez maior do que vem recebendo) o princípio da cindibilidade ou parcelaridade do título, que é tratado essencialmente no que diz respeito ao Registro de Imóveis2. É precisamente sobre tal princípio do sistema de registros que pretendemos nos debruçar, neste artigo e no próximo que a ele se seguirá. Antes de adentrar o tema propriamente dito, são cabíveis dois registros introdutórios. O primeiro diz respeito à noção de princípio, eis que esta espécie normativa é o ponto de partida dos estudos acerca do que representa a cindibilidade para o sistema registral. Adere-se aqui, para fins estipulativos e operacionais, ao posicionamento de Humberto Ávila3, para quem os princípios são a espécie de norma jurídica que imediatamente estabelece um estado ideal de coisas orientador cuja aplicação demanda do operador do Direito a concretização de condutas cujos efeitos promovem o fim idealizado, contribuindo com outras razões mais específicas para a solução das questões fácticas. É sob essa perspectiva principiológica que se desenvolverão as considerações sobre as normas-princípios a seguir. A segunda nota introdutória refere-se ao panorama dos dois artigos, que terá como ponto inicial específico a relação entre a unitariedade da matrícula imobiliária e a parcelaridade – ambas noções que partem da ideia principiológica citada acima; o segundo ponto especial tratará dos contornos da cindibilidade e o que ficará denominado a partir daqui como aplicação primária (= em qual dos múltiplos Registros brasileiros se aplica); o terceiro e último ponto especial tratará de considerações sobre a aplicação do seccionamento a outras searas registrais, para além do Registro Imobiliário. 1. A origem: unitariedade ou unidade matricial Antes de adentrar o tema deste subitem, é necessário um breve histórico sobre o sistema registral imobiliário brasileiro anterior à lei 6.015. Conforme aponta Guilherme Fanti4, vigorava antes de 1973 uma estrutura baseada na transcrição, o modelo transcritivo, que, na prática, se baseava na constituição de direitos reais imobiliários a partir do título, constando nos amparos físicos em voga todo o teor do que constava no título (por isso transcrição, isto é, a ideia de transcrever todo o título no suporte sob custódia da autoridade pertinente). Atualmente, vigora o modelo inscritivo, que se baseia na extração do título dos dados subjetivos e objetivos essenciais com o consequente transporte para o fólio real5. Com o advento da LRP houve a instituição da matrícula como elemento fundamental para a identificação das posições jusreais e seus titulares em relação a determinado bem imóvel. Trata-se do chamado princípio da unitariedade da matrícula, ou unitariedade matricial, cujo estado ideal determinado é o de que para cada imóvel deve haver apenas uma única matrícula6. Como a matrícula concentra todos os dados subjetivos e objetivos relacionados ao imóvel, o perfil de Registro Imobiliário no Brasil enfatizou sua adequação ao sistema de modo e título (de raízes romanas), que tem como base a ideia de que só é possível constituir, modificar ou extinguir posições jurídicas reais imobiliárias mediante um ato jurídico registrável (= título) cujo teor é inscrito na matrícula do bem através de um outro ato, o ato registral em sentido lato (= modo)7. Esclarece Luciano de Camargo Penteado8 que esse sistema modo-título significa que os direitos reais sobre imóvel só existem se houver um ato jurídico que sirva de fundamento (= título) para o exercício do registro lato sensu (= modo). É considerando essa relação entre um ato jurídico fundamento e um ato jurídico inscricional que nasce a noção da cindibilidade do título em sentido formal, que tem como base o aproveitamento do revestimento a ser registrado (= o título em sentido formal) quanto aos dados registráveis, isto é, contemplando, dentro de um título com conteúdo irregistrável e registrável, aquilo que é efetivamente passível de ser inscrito9. Insta salientar aqui, portanto, a diferença entre título em sua acepção formal e título na acepção material: o primeiro diz respeito ao ato instrumentalizado, ao instrumento em si (suporte documental), enquanto a segunda definição diz respeito ao conteúdo constante do documento (categoria do pensamento humano, mormente do pensamento jurídico), o que corresponde à causa do registro lato sensu10. Como fundamento principiológico máximo regente da atividade extrajudicial, tanto dos Registradores quanto dos Tabeliães, está a legalidade, que, partindo da base do art. 5º, II da Constituição Federal, acaba por se aproximar aqui do sentido do Direito Administrativo, enunciado por Maria Sylvia Zanella Di Pietro11 como o estado ideal no qual o Poder Público executor das tarefas constitucionais só pode realizar algo quando estampada tal conduta na lei. Essa noção mais específica reverbera na atividade registral imobiliária, eis que só podem ser inscritos na matrícula12 aqueles atos considerados registráveis, os quais constam do art. 167, I da LRP13. Vê-se que a cindibilidade nasce juntamente (ou, melhor dizendo, em decorrência) da unicidade matricial, eis que a canalização dos dados imobiliários permite ao Oficial Registrador aproveitar o título apresentado pelo interessado naquilo que é registrável. Apesar disso, a ideia que permeia Direito Registral (Imobiliário) e cindibilidade e os conecta com a Teoria Geral do Direito está naquilo que tanto Marcos Bernardes de Mello14 como F. C. Pontes de Miranda15 ensinam: os fatos jurídicos lato sensu são aqueles recortes dos fatos sociais sobre os quais incidem normas jurídicas e que têm, por princípio, um viés teleológico, qual seja, a produção de efeitos jurídicos16. É dizer: a cindibilidade do título formal carrega em si o ensinamento da Teoria Geral do Direito de que o telos das condutas e eventos é, justamente, sob o ponto de vista do que almeja o corpo de normas jurídicas, a produção de efeitos jurídicos, cabendo ao Registro de Imóveis, na figura do seu titular delegatário, aproveitar o ato que lhe é levado para inscrição (ou transcrição) – ao menos sempre que possível. Para além da dúvida entre inscrição e transcrição do título, a lei 6.015 trata de forma inaugural e geral que as atividades registrais se baseiam na chamada escrituração, que “será feita em livros encadernados, que obedecerão aos modelos anexos a esta Lei, sujeitos à correição da autoridade judiciária competente” (art. 3º, caput). De acordo com José Horácio Cintra Gonçalves Pereira17, escrituração consiste no processo por meio do qual o delegatário do munus registral transporta sistemática e metodicamente para certo suporte (os livros) dados relacionados à função registradora em espécie (registro civil das pessoas naturais e jurídicas, títulos e documentos, imobiliário, marítimo). O processo escritural pode ser melhor compreendido à luz da Teoria Geral do Direito, tendo em mira atuações típicas que competem ao operador do Direito (em geral), que tem como uma das suas espécies os delegatários extrajudiciários. Trata-se, aqui, da divisão que João Alberto Schützer Del Nero18 realiza entre qualificação e aplicação do Direito. Qualificar tem um duplo aspecto, relacionado a momentos distintos19: (i) de forma apriorística ou nomogenética (= processo de criação da norma jurídica geral e abstrata), qualificação consiste na identificação dos elementos do mundo dos fatos que serão inseridos dentro da moldura da norma jurídica; e (ii) de forma posterior ou ex post norma, qualificação consiste na afirmação de que determinado fato concreto corresponde a um determinado módulo jurídico, o que configura uma das etapas na aplicação da norma elaborada aos fatos sobre os quais incide. Para a elaboração da norma, tanto João Alberto Schützer Del Nero20 quanto Humberto Ávila21 mostram que o operador do Direito deve se debruçar sobre o plano fáctico e dele extrair elementos que componham um enunciado fáctico, bem como extrair do sistema jurídico um enunciado jurídico, sendo a verdadeira norma jurídica o ponto de encontro entre os dois mundos, a correlação entre preceito maior (= enunciado jurídico) e preceito menor (= enunciado fáctico), resultando na criação da norma jurídica para o caso concreto e na sua aplicação, para atribuição dos efeitos de Direito22. Como o Registrador é um jurista, e, portanto, tem como pressuposto da sua específica atividade escritural o exercício da qualificação e da aplicação do Direito, a cindibilidade encontra mais um fundamento, eis que no desenvolvimento das premissas fácticas e das premissas jurídicas podem ser identificados diversos elementos registráveis e irregistráveis no título, cabendo ao prudente delegatário cindir (separar, recortar, parcelar) o que é possível de aproveitamento, aqui entendido como o que é possível de imediatamente ser registrado. 2. Cindibilidade: definição e aplicação primária Sedimentadas as bases originárias, conceituais e históricas da cindibilidade, cabe agora a exposição técnica do princípio em seus detalhes. Com sustento nas lições de Guilherme Fanti23, Vitor Frederico Kümpel e Gisele de Menezes Viana24, pode-se afirmar que a cindibilidade é um princípio registral que determina como estado de coisas a produção dos efeitos jusreais imobiliários, tendo como demanda contra o Oficial de Registros o máximo aproveitamento do título (em sentido) formal no que é registrável. De forma mais sintética, o princípio da cindibilidade determina ao Registrador a cisão do título (em sentido formal) levado a registro, de modo a aproveitar ou extrair elementos que podem imediatamente ingressar na matrícula, desconsiderando outros que sejam irregistráveis (ou por antijuridicidade, ou por dependerem de providências adicionais)25. Como asseverado anteriormente, a aplicação da cindibilidade pressupõe que o Oficial de Registro tenha realizado a qualificação jurídica, o desenvolvimento do enunciado fáctico e do enunciado jurídico, para identificar nesses dois planos o que é passível de imediato ingresso registral e o que não é. Ademais, em razão da diferenciação entre título formal e material, não se pode olvidar que o aproveitamento é do documento, o que dá o nome à espécie normativa em comento; todavia, existe intimidade com a acepção substantiva, diante do fato de que no mesmo documento há pluralidade de causas jusreais, as quais podem ou não ter independência entre si, e a primeira hipótese resulta na aplicação da parcelaridade26. Como indica F. C. Pontes de Miranda27, a situação de irregistrabilidade é situação provisória ou permanente de inviabilidade de registro lato sensu (= registro stricto sensu ou averbação) dos atos jurídicos, ou por não constarem legalmente como passíveis de serem inscritos no fólio real (= registráveis, segundo art. 167, I e II, LRP) ou por haver pendência a ser sanada pelo interessado. Ocorre que, como enunciado na norma-princípio da parcelaridade, há revestimentos documentais que ostentam duas ou mais situações jurídicas, o que permite que o Oficial de Registro recorte do teor documental aquilo que pode ser aproveitado e, por conseguinte, transporte para a matrícula. A doutrina28 estabelece alguns critérios para a aplicação da cindibilidade do título em sua acepção formal: (i) a pluralidade de conteúdos (o que implica a pluralidade de posições jurídicas) constantes em um mesmo título formal; (ii) a existência de títulos registráveis e irregistráveis; e (iii) a ausência, dentro do mesmo título formal, de interdependência ou unidade do ato registrável em relação ao ato irregistrável. Esses critérios transcendem a academia e servem como instrumental valioso para o âmbito prático. O juízo da 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo, SP, em procedimento de dúvida inversa29 suscitado em face do 17º Oficial Registro de Imóveis da capital paulista, enfrentou o tema em caso que envolveu negativa de registro stricto sensu de carta de sentença relacionada a algumas matrículas imobiliárias, entendendo o Registrador pela impossibilidade da aplicação da cindibilidade ao caso por haver obstáculo legal tributário, isto é, relacionado com o recolhimento do ITBI. Por outro lado, a suscitante afirmou que é possível a aplicação da cindibilidade em virtude de outro Oficial de Registro de Imóveis paulistano ter realizado o ato registral sem exigir o ITBI. Sobre esse caso, entendeu o juízo que a carta de sentença, na verdade, cristaliza um título em sentido material, a saber, a permuta de imóveis, especificamente a permuta de frações ideais entre condôminos, eis que a nominada divisão feita em sede judicial de divisão de bens mostrou a aquisição integral de direitos imobiliários por parte de alguns condôminos – sendo a suscitante uma das integrantes de tal grupo -, mediante anuência de todos os envolvidos. Diante desse quadro a magistrada, na sua função administrativa, entendeu inicialmente pela viabilidade da aplicação da parcelaridade, pois havia diversos imóveis envolvidos e, consequentemente, diversas posições jurídicas reais constantes em um mesmo amparo documental, a carta de sentença, concluindo ao final pelo parcial acolhimento da pretensão administrativa deduzida pela suscitante e determinando a aplicação da cindibilidade em relação a certos bens permutados, pois eram atos que, apesar do mesmo suporte formal, eram independentes daqueles sobre os quais a julgadora manteve o óbice tributário. Outro caso foi apreciado pelo Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo (CSMTJSP)30. Tratou-se de apelação contra decisão proferida em procedimento de dúvida inversa contra o 13º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo, cujo contexto fático era o de um título formal que continha ato de doação e constituição de usufruto cujo ato registral foi negado pela falta de prova documentária específica do recolhimento tributário, mas cujo pagamento foi declarado em escritura pública. Em paralelo ao trâmite registral houve o falecimento dos beneficiários identificados como usufrutuários. Inicialmente, o acórdão reconheceu a existência de todo um sistema de presunções relativas (de Direito Notarial e de Direito Civil) que permitiam concluir pelo pagamento do tributo. O segundo ponto abordado pelo acórdão foi relativo ao falecimento dos usufrutuários, eis que em um mesmo documento constavam intenções relacionadas a dois direitos reais (a propriedade transmitida e a constituição do usufruto), ingressando o tema da cindibilidade aplicada diante do fato de que poderia ser registrada a doação, que é ato independente do usufruto, cuja instituição e cancelamento foram dispensados. O mesmo Conselho Superior da Magistratura do Tribunal bandeirante31 analisou outro caso de interesse para a temática ora em exame. O Registro de Imóveis de Penápolis/SP, um Cartório híbrido, negou registro de escritura de doação sobre dois imóveis, sob o pretexto de que os bens estavam sujeitos a efeitos de cláusulas restritivas de incomunicabilidade e impenhorabilidade (acarretando inalienabilidade). O interessado recorreu ao órgão colegiado da Corte paulista, que vislumbrou em juntada posterior de documentos que o doador possuía patrimônio para dispor livremente dos imóveis objeto do negócio contratual de doação. O colegiado entendeu pela possibilidade de registro, acolhendo a pretensão recursal do interessado, pois o Código Civil de 2002 exige que a parte disponível tenha cláusulas restritivas motivadas, o que não teria acontecido no caso. A cindibilidade entra no teor da decisão diante do fato de que em uma mesma escritura constavam dois atos: a doação e o conjunto de cláusulas restritivas, sendo aproveitado o primeiro ato para fins de registro no fólio real, eis que não haveria situação de dependência ou conectividade entre os atos. Como exemplo agora de inaplicabilidade da norma-princípio da cindibilidade, há um terceiro aresto proferido pelo CSMTJSP32: caso no qual o Oficial de Registro de Imóveis de Araras/SP, negou ato registral de transmissão total de direito de propriedade titularizado em condomínio e que tinha parcela dos condôminos sujeitos a cláusulas restritivas. O interessado apelante sustentou que sua parcela condominial não estava sujeita às restrições e, portanto, poderia ser aplicado o princípio da cindibilidade com a consequente transferência parcial (= da parte não restrita) em detrimento dos condôminos cuja posição condominial estava sujeita à indisponibilidade. Apesar da quota-parte sobre bem imóvel em condomínio ser um direito subjetivo real dotado de independência em relação às demais quota-partes, o colegiado bandeirante entendeu pela inviabilidade do registro mediante aplicação da cindibilidade do título formal, pois o negócio jurídico instrumentalizado (de transmissão integral do domínio imobiliário) não podia ser dividido, eis que não houve negociação de fração ideal de cada condômino, e sim da totalidade dominial, mediante exteriorização de vontade única das partes e sem lugar para o fracionamento. É justamente essa unidade indissolúvel resultante da declaração negocial dos envolvidos que inviabilizou a aplicação da cisão do título formal. Fonte: Migalhas