Em 17 de maio de 1990, a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), porém, a transexualidade só deixou de ser vista como doença pela OMS em 2018. Além disso, até os dias atuais, cerca de 70 países ainda tipificam orientações sexuais não heterossexuais, e identidades de gênero não cisgêneras, como crime. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132, passou a equiparar as relações entre pessoas do mesmo sexo às uniões estáveis entre homens e mulheres em 2011, e em 2013 o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estabeleceu, através da Resolução nº 175, que casais do mesmo sexo teriam direito ao casamento civil e à conversão de união estável em civil, e que tabeliões e juízes são proibidos de se recusar a registrar essa união. No ano de 2019 ocorreu — tardiamente, já que pessoas LGBTQIA+ sempre existiram — mais um avanço em relação à proteção dessa parcela da população brasileira. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 26 (ação julgada conjuntamente ao MI 4733), reconheceu a omissão inconstitucional do Congresso Nacional ao não editar lei que criminalizasse atos homofóbicos e transfóbicos. Por conta disso, as condutas de homofobia e transfobia, envolvendo “aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero” são enquadradas como tipo penal definido na Lei do Racismo (Lei nº 7.716/89), até que o Congresso edite lei sobre a matéria, o que até os dias atuas, não foi feito. Em seu voto, o relator ressaltou o dever do Estado em atuar na defesa da dignidade da pessoa humana e a vedação a comportamentos que possam gerar tratamentos discriminatórios fundados em inadmissíveis visões excludentes. Assim, depreende-se que há necessidade de mudança nos procedimentos adotados pelo ordenamento, que possam sustentar quaisquer formas de preconceito. Quanto a isso, desde 2011 existe um projeto de lei (PL), atualmente arquivado, que visa a permitir o reconhecimento legal da união estável entre pessoas do mesmo sexo. A PL nº 612/2011, de autoria da senadora Marta Suplicy, na época do Partido dos Trabalhadores (PT). O projeto altera os artigos 1723 e 1726 do Código Civil retirando os termos “marido e mulher” e inserindo a expressão “entre duas pessoas”. Tendo sido estabelecido esse panorama, passa-se a analisar o artigo 1.535 do Código Civil. A referida norma preceitua que na celebração do casamento, após a declaração dos nubentes de que pretendem se casar por livre e espontânea vontade, o presidente do ato declarará efetuado o casamento nos termos: “De acordo com a vontade que ambos acabais de afirmar perante mim, de vos receberdes por marido e mulher, eu, em nome da lei, vos declaro casados”. Observa-se que, apesar de desde 2013 o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo ser autorizado no Brasil, não basta que se possa celebrar um casamento homoafetivo se a identidade de gênero dos nubentes é totalmente negligenciada no momento da celebração, que exige que o condutor da cerimônia identifique as partes como “marido e mulher”. Esse silenciamento é naturalizado na sociedade brasileira, que é heteronormativa, fundamentada em “falsos pressupostos de naturalização das práticas heterossexuais e no caráter desviante de outras práticas”, sendo o silêncio uma estratégia dominante de apagamento da diversidade identidades de gênero e orientações sexuais. E o Código Civil de 2002, que surge dentro desse contexto heteronormativo e excludente, além de dispor sobre os nubentes como “marido e mulher”, exige que sejam nomeados dessa forma na celebração da união. Ocorre que essa regra é nitidamente contrária ao que se buscou proteger na ADI nº 4277, na ADPF nº 132, na Resolução nº 175 do CNJ e na ADO nº 26. Ademais, a norma contraria um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, que é a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (artigo 3º, IV, Constituição Federal). Além disso, o artigo 5º da Constituição Federal, em seu caput, afirma que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantido inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, entre outros. Além de violar o próprio ordenamento pátrio, o texto do artigo 1.535 do Código Civil vai de encontro a normas internacionais ratificadas pelo Brasil. Dispõe a Convenção Americana de Direitos Humanos, em seu artigo 1º, que os Estados-partes da convenção (que é o caso do Brasil) comprometem-se a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de qualquer outra condição social. Já a Declaração Universal dos Direitos Humanos, por sua vez, em seu artigo 2º prevê que todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nessa declaração, sem distinção de qualquer espécie. Assim, nota-se que tratar um casal homoafetivo (ou em que um dos nubentes é uma pessoa não binária) como “marido e mulher” é violentar aquela construção familiar num dos momentos mais importantes da vida dos sujeitos, violando o direito pátrio e o direito internacional. Recentemente, a necessidade de uma alteração na legislação, retirando a declaração dos casados como “marido e mulher” do artigo 1535 do Código Civil, foi reconhecida. A deputada Natália Bonavides apresentou em 11 de novembro o Projeto de Lei registrado sob o nº 4004/2021, que propõe alterar o artigo 1535 do Código Civil para: “Artigo 1535 — Presentes os contraentes, em pessoa ou por procurador especial, juntamente com as testemunhas e o oficial do registro, a presidência do ato, ouvida aos nubentes a afirmação de que pretendem casar por livre e espontânea vontade, declarará efetuado o casamento, nestes termos: ‘De acordo com a vontade que acabam de declarar perante mim, eu, em nome da lei, declaro firmado o casamento”‘. Em sua justificativa, afirma que não basta ser reconhecido o direito ao casamento se não houver a adequação da cerimônia: “A realização de casamentos com termos que violam a dignidade de casais milita em sentido contrário ao estabelecido na Constituição, o que exige uma modificação legislativa para adequar o Código Civil e a cerimônia de casamento à realidade e à jurisprudência do STF”. Caso seja aprovada, a alteração significará a primeira inclusão em lei de direitos de pessoas LGBTQIA+, haja vista que, até o presente momento, os direitos dessa parcela da população só estão sendo garantidos por interpretação dos tribunais superiores, não pela própria legislação, apesar de não faltarem propostas de projetos de lei, em sua maioria, arquivadas. Fonte: Consultor Jurídico (ConJur)