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Artigo: Fato gerador e sujeição passiva de IPTU em imóveis públicos – Por Rodrigo Tomiello da Silva, Paulo Henrique Garcia D’Angioli e José Guilherme Fontes de Azevedo Costa

Segundo o artigo 156, I, da Constituição desta República (CRFB/88), compete aos municípios instituir Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU). O tributo é também tratado nos artigos 32 a 34 do Código Tributário Nacional — Lei nº 5.172/66 (CTN). À luz apenas da CRFB/88, apenas a propriedade poderia ser fato gerador de tributação, enquanto o CTN informa que o IPTU tem como hipóteses de incidência “a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do município”. Da mesma forma, se extrai da CRFB/88 que apenas o proprietário poderia ser sujeito passivo do referido imposto real. O CTN (norma de 1966, recordemos!), contudo, informa em seu artigo 34 (e coerente com o previsto no seu artigo 32, diga-se) que “contribuinte do imposto é o proprietário do imóvel, o titular do seu domínio útil, ou o seu possuidor a qualquer título”. Nessa linha, normas municipais definidoras da matriz concreta de incidência, naturalmente, costumam refletir o espectro mais amplo possível em busca da tributação por IPTU e em regra trazem textos abertos, como o do CTN. Aqui alcançamos as dúvidas a serem exploradas: qual a amplitude da hipótese de incidência do IPTU e da definição de contribuintes considerando a diferença de tratamentos no ordenamento e quem no Judiciário deveria ter a palavra final nessa definição? Aprofundemo-nos no problema antes de tentar apresentar críticas: quanto a imóveis públicos, a mesma CRFB/88 que veicula a competência de tributação de propriedade no seu artigo 156, I, traz também a norma de imunidade (de não competência) no artigo 150, VI, “a”. Trata-se aqui da chamada imunidade recíproca, que impede, por parte de todos os entes da federação, a instituição de impostos sobre “patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros”. Como se verifica nos §§1º e 2º, há ainda conjunto de regras de extensão da imunidade e de limitação dessa extensão. Vejamos, em síntese, a leitura constitucional: 1) Tributação (Artigo 156, I, c/c 150, §3º, in fine): Sobre a propriedade (inclusive a do promitente comprador); 2) Imunidade primária (Artigo 150, VI, “a”): Não há imposto sobre propriedades de UFs; 3) Extensão de imunidade (Artigo 150, §2º): Para autarquias e fundações autárquicas, não há imposto sobre propriedades vinculadas às suas finalidades essenciais; 4) Restrições de imunidade (Artigo 150, §3º): Para UFs, autarquias e fundações autárquicas, não há imunidade caso a propriedade: — Seja empregada na exploração de atividades econômicas; ou — Haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário. As regras de tributação e de não tributação, ambas na Constituição, nascem juntas. É possível, na combinação de ambas, construir o seguinte racional para o caso sob nossa apreciação: é devido IPTU sobre propriedade urbana de imóveis, excetuando-se apenas os de UFs e de autarquias e fundações autárquicas (para esses entes da administração pública indireta, apenas os imóveis vinculados às suas atividades essenciais) onde não haja atividade econômica nem contraprestação ou pagamento pelo usuário. A expressão “restrição de imunidade” não foi empregada à toa, absolutamente. Ela é a principal semente da qual germinam estas linhas e, nesse contexto, chegamos à segunda e última questão que nos move: não há dúvidas de que compete ao STF a leitura final quanto a imunidades, mas qual pode ser a profundidade dessa leitura? Ela pode atingir a visão constitucional e normativa sobre hipótese de incidência e definição de contribuinte? Ou caberia ao Superior Tribunal de Justiça esse papel? O STJ, exegeta final das leis federais, tem jurisprudência consolidada no sentido de que o fato gerador do IPTU é a propriedade, o domínio útil ou a posse ad usucapionem de bem imóvel, por natureza ou por acessão física. Segundo o Código Civil (CC), diferem os conceitos de propriedade, domínio útil e posse. O conceito de propriedade, direito real (artigo 1.225, I, do CC), é mais amplo do que o de posse (esta, consoante redação do artigo 1.196 do CC, é “exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”). A posse pode dividir-se em direta ou indireta. Direta para quem detém materialmente a coisa e indireta para o proprietário que a cedeu a outrem. As faculdades decorrentes da propriedade podem estar atribuídas a pessoas diversas, como no caso da locação ou do usufruto. Assim, pode haver posse (autônoma) sem propriedade; a rigor, só é proprietário de imóvel (o que supõe o uso, o gozo e a disposição do bem, à luz do artigo 1.228 do CC), no Brasil, quem adquiriu por transcrição de título translativo na circunscrição imobiliária competente, acessão (CC, artigo 1.248 e segs.) ou usucapião (CC, artigo 1.238 e ss). O domínio útil (expressão considerada pelos civilistas sem maior rigor científico, embora prevista no artigo 1.473, III, do CC) do enfiteuta opõe-se ao domínio direto (do proprietário). O titular do domínio útil é necessariamente o não-proprietário na enfiteuse. A importância de recordar esses conceitos cíveis se revela na medida em que o próprio CTN informa no seu artigo 110 o quanto o Direito Tributário, em certos aspectos, é uma disciplina de superposição e a lei complementar, nesse dispositivo, cria uma norma de contenção interpretativa, uma forma de proteção contra interpretações ao modo Humpty Dumpty, personagem de Lewis Carrol em “Alice através do espelho”, que explica à Alice o significado das palavras: “‘Quando eu uso uma palavra’, disse Humpty Dumpty num tom bastante desdenhoso, ‘ela significa exatamente o que quero que signifique: nem mais nem menos’. ‘A questão é’, disse Alice, ‘se pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes’. ‘A questão’, disse Humpty Dumpty, ‘é saber quem vai mandar — só isto'”. O ponto nevrálgico aqui é de que, segundo o STJ (seu exegeta por excelência, à luz do previsto no artigo 105, III, da CRFB/88), não é qualquer posse que o CTN deseja ver tributada. É imprescindível que se trate de posse ad usucapionem. Dito de outro modo, é indispensável que se trate de posse que, por suas características, possa conduzir à propriedade. É nessa linha a lição do professor Sacha Calmon em sua obra “Comentários à Constituição de 1988 — sistema tributário, 6ª edição”, Forense, p. 252: “Não é qualquer posse que deseja ver tributada. Não a posse direta do locatário, do comandatário, do arrendatário de terreno, do administrador de bem de terceiro, do usuário ou habitador (uso e habitação), ou do possuidor clandestino ou precário (posse nova), etc. A posse prevista no Código Tributário Nacional, como tributável, é a de pessoa que já é ou pode vir a ser, proprietário da coisa. O Código Civil, independentemente de algumas disposições em contrário, tomou partido claro ao lado de Ihering contra Savigny, na querela sobre natureza jurídica da posse. Embora em certas passagens adote as intuições de Savigny, vê na posse a exteriorização da propriedade. E só quando a posse exterioriza a propriedade é possível torná-la como núcleo do fato jurígeno criador da obrigação tributária do IPTU”. É no mesmo sentido a lição de professor Aires F. Barreto, em seu “Curso de Direito Tributário” (Editora Saraiva, 2009, pág. 2016): não se trata de qualquer posse apta a gerar a obrigação tributária em questão, mas, sim, aquela qualificada pelo animus domini. Pois bem: fato é que, na forma do artigo 183, §3º, da CRFB/88, não se pode admitir posse ad usucapionem (com ânimo de dono) de particulares sobre imóveis públicos — tal é a previsão constitucional de imprescritibilidade dos bens da Administração, reiterada no Código Civil. Isso leva o STJ ainda hoje a pontuar (corretamente, aliás!) que os possuidores de imóveis públicos não podem ser entendidos como sujeitos passivos de IPTU: “IV — Consoante a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o IPTU não é exigível de cessionária de imóvel pertencente à União, quando esta detém a posse mediante relação pessoal, sem animus domini” (RESP nº 1.882.132/RJ, relator ministro Francisco Falcão, de 31.05.2021, publicado no DJ de 2/6/2021). Tentamos então aqui responder às perguntas que formulamos: compete ao STJ, na condição de intérprete do CTN, informar os limites da hipótese de incidência e da sujeição passiva de IPTU. E toda a sua jurisprudência aponta no sentido de que: 1) apenas a posse com ânimo de dono pode se configurar como hipótese de incidência; e 2) em casos de ocupação contratual de imóveis públicos, na medida em que essa posse não é exercida pelo particular com ânimo de dono, ele não pode ser considerado contribuinte. Acontece que em 2018 o Supremo Tribunal Federal julgou os Recursos Extraordinários (RE) 594.015/SP [3] e 601.720/RJ [4], fixando os Temas de Repercussão Geral (TRG) nºs 385  e 437: “A imunidade recíproca, prevista no artigo 150, VI, a, da Constituição não se estende a empresa privada arrendatária de imóvel público, quando seja ela exploradora de atividade econômica com fins lucrativos. Nessa hipótese é constitucional a cobrança do IPTU pelo Município” e “Incide o IPTU, considerado imóvel de pessoa jurídica de direito público cedido a pessoa jurídica de direito privado, devedora do tributo”. Consoante preceito no artigo 927, III, do Código de Processo Civil (CPC), as teses de repercussão geral vinculam todo o Judiciário — exceto o próprio STF. Dissequemos as TRGs 385 e 487 para entendermos exatamente o que a Suprema Corte vaticinou e o quanto, com isso, superou jurisprudência histórica (e correta, à luz do CC e do CTN) do STJ. Acreditamos, com toda a vênia dos mesmos aplausos que comumente dirigimos ao STF, que existe um hiato grande entre o que deveria ter sido decidido e o que foi decidido. Não há nenhuma dúvida de que o STF acerta ao afirmar que a imunidade recíproca cai diante do exercício de atividade empresarial em imóvel público, e que é possível a cobrança de IPTU sobre referido bem. Objetivamente, o raciocínio segue toda a linha a que alude o artigo 150 da CRFB/88 sobre o tema. O erro grave está em, com espeque nisso, compreender que exsurge uma sujeição passiva do IPTU, imposto real, não para o ente público proprietário do imóvel, mas para o particular que ocupa — e apenas porque lá pratica atividade econômica. Essa visão viola a regra matriz constitucional e legal de incidência do IPTU; entre outros, desvirtua-o como imposto real — tornando-o pessoal. Da forma como os municípios vêm enxergando a decisão do tema pelo STF, a “prática de atividade empresarial em imóvel público” deixa de ser “causa de restrição de imunidade” e se torna… Hipótese incidência de IPTU! Estabelecida essa premissa equivocada e sem lastro constitucional, ato contínuo, se quem pratica a atividade econômica é o particular ocupante do imóvel público, a ele é transferida a condição de contribuinte. Esse é o amálgama, ao menos empírico, das teses fixadas. Ocorre que esse conjunto não se compatibiliza com as previsões da CRFB/88, do CTN e nem com a adequada jurisprudência historicamente firmada pelo STJ sobre o tema! Nossa crítica é simples: restringir imunidade não pode jamais significar o alargamento da hipótese de incidência de determinado tributo ou, pior, deslocar a sujeição passiva do IPTU. Poderíamos crer na tese do realismo jurídico como já enunciaram ministros em seus votos, “a Constituição é o que o Supremo diz que ela é”, mas preferimos ser intransigentes na defesa da Constituição e de limites semânticos à interpretação do texto da Carta. A linguagem do Direito é pública, compartilhada, só há norma jurídica democraticamente construída quando sua interpretação não está à disposição do intérprete como um adereço que pode ser posto e retirado conforme a vontade da autoridade. Evitemos, pois, os intérpretes estilo Humpty Dumpty. O grande escritor peruano Mario Vargas Llosa, em sua obra “Travessuras da Menina Má”, mostra que, para o protagonista Ricardo Somocurcio, por maior que seja a travessura praticada pela “menina má” Lily, sempre haverá espaço para a reconciliação. Que o STF supere essa leitura inadequada e não seja o menino mau da história; que faça duradouras pazes com a Constituição, até porque sua resiliência não tem se mostrado tão infinita… Fonte: ConJur