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Artigo: Existir com dignidade: direito de todos, dever do Estado – Por Raquel Santos Pereira Chrispino

O registro civil de nascimento deve ser considerado um direito humano em si ao consignar os vínculos mais essenciais da pessoa, incluindo ascendência genética e direito à nacionalidade, além de ser o primeiro documento básico do cidadão. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima, no entanto, que pelo menos 3 milhões de pessoas não tinham registro civil de nascimento no Brasil em 2018, com sérias consequências para o exercício de sua cidadania. Há 24 anos atuando como juíza no Rio de Janeiro, tive maior contato com esse tema ao ingressar na 1ª Vara de Família de São João de Meriti, cidade com um dos maiores índices de sub-registro do Brasil. Ali percebi que parte significativa dos processos de registro tardio vem de pessoas com passagem pelo sistema prisional. Em muitos casos, a falta dos documentos impede a comprovação de atividade laboral, frustrando acesso a um direito básico e às expectativas da própria sociedade quanto ao futuro dessas pessoas. Além dos casos de sub-registro de nascimento, as pessoas sem documentos no sistema prisional também pertencem ao grupo dos chamados “equiparados” —que têm notícias do registro, mas não conseguem localizá-lo para emitir a segunda via da certidão. Há ainda aqueles que foram presos em unidade da Federação diferente daquela onde foram civilmente identificados, com o agravante de que não há comunicação entre os cadastros administrativos de identidade dos governos estaduais. Nas audiências para buscar regularizar esses casos, é difícil assimilar que há registros de identidade criminal para fins de punição, mas não identidades civis para fins de cidadania, mesmo depois de anos sob a tutela do Estado. Muitas vezes, sequer se confirmava o nome do acusado ou do condenado. O conceito de identificação criminal, do qual decorre o registro criminal, é previsto na Constituição Federal. Em geral, é usado nos processos criminais e de execução penal porque grande parte das pessoas não apresenta documentos no ato da prisão. Importante destacar que, sem a confirmação da identidade, abre-se um perigoso caminho para a prisão de inocentes, especialmente pessoas negras e hipossuficientes que têm dificuldades para demonstrar não serem as autoras do crime. No cumprimento da pena, a falta de identidade civil impede direitos básicos como acesso à medicação controlada ou ao trabalho formal, além de dificuldades no cadastramento de visitantes e nos trâmites em caso de óbito. A suspensão dos direitos políticos e do título de eleitor após a prisão também dificultam a emissão de documentos como o Cadastro de Pessoa Física (CPF) e a Carteira de Trabalho e Previdência Social, essenciais para a retomada da vida em sociedade. Embora o tema do sub-registro tenha gerado alguma mobilização institucional nos últimos anos, inclusive no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, é a primeira vez que uma mobilização nacional ampla com foco no contexto carcerário está em andamento. O Conselho Nacional de Justiça e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, com apoio do Ministério da Justiça e Segurança Pública, acionaram mais de 150 parceiros locais e nacionais, incluindo o Tribunal Superior Eleitoral, para garantir que pessoas privadas de liberdade tenham sua identidade civil esclarecida em um cadastro único para obterem documentos. Um fluxo permanente de emissão está sendo criado junto a unidades da Federação, que também receberão 5.400 kits biométricos e apoio na formação de profissionais para a sustentabilidade das operações no longo prazo. Ao confirmar a identidade das pessoas logo após a prisão e permitir o acesso à documentação civil, o Estado viabiliza direitos mínimos e a racionalização da porta de saída do sistema prisional. Sem isso, não podemos esperar resultados minimamente razoáveis da experiência do cárcere, seja para a segurança pública, seja para o objetivo de inserção social após o cumprimento de pena. Fonte: Folha de S.Paulo