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Artigo: Servidão legal ou passagem forçada: Registrabilidade do instituto da passagem forçada no Ofício Imobiliário – Um estudo da jurisprudência do STJ – Por Sérgio Jacomino

Servidão legal ou passagem forçada? No STJ encontramos a renovação da jurisprudência brasileira. Muitos acórdãos inovam, outros confirmam a doutrina. Há, contudo, alguns arestos que podem ser objeto de boas discussões. É o caso do REsp 1.268.998-RS, da relatoria do min. Luís Felipe Salomão. Discutia-se a possibilidade de penhora incidir sobre imóvel encravado. O executado havia oposto embargos sustentando que os imóveis de sua propriedade seriam impenhoráveis, pois “o primeiro deles é sua residência e o segundo está encravado no imóvel residencial”. O tribunal entendeu perfeitamente possível a penhora com base no fato de que os imóveis têm matrícula própria no Registro de Imóveis competente. Nos termos do inc. I, § 1º, do art. 176 da LRP, com base no “princípio da unitariedade matricial”, o imóvel encravado, “por ter matrícula própria, constitui um segundo bem imóvel do executado”, sendo, portanto, perfeitamente possível a penhora. Para superação do óbice à inscrição da penhora, o ministro relator acenou para a possibilidade de se instituir uma “servidão legal em caráter precário, isto é, de direito de vizinhança, e não de servidão (predial), da qual distingue-se, em inúmeros pontos, visto que aqueles direitos são limitações impostas por lei ao direito de propriedade, restrições estas que prescindem de registro”. Decidiu-se, ainda, que, previamente à expropriação judicial, caberia ao juízo executivo delimitar judicialmente a passagem. Vamos analisar os vários aspectos que este aresto suscita. “Servidão legal” – um conceito superado Concorda-se com o decidido. Será perfeitamente possível a penhora de imóvel encravado. Todavia, exsurge uma dissonância conceitual acerca dos institutos tratados no v. acórdão. Veremos que a expressão – servidão legal, citada – não foi acolhida e prestigiada no ordenamento civil brasileiro. Já a expressão passagem forçada sim. Pergunta-se: (a) por que razão no v. acórdão se adotou, na própria ementa, a primeira expressão em detrimento da segunda? (b) será possível, ainda no iter executivo, com a penhora decretada e sua inscrição no Registro competente, impor desde logo a passagem forçada? A codificação civil não adotou a expressão servidão legal1, embora o termo tenha transitado pela legislação (inc. II do art. 1.558 do CC/1916 ou no art. 77 do Código de Águas). A chamada servidão legal insinuou-se, de fato, em nosso direito. Lafaiete já a recolhia aludindo à servidão legal de trânsito para favorecer “prédio encravado sem serventia de caminho pelos prédios vizinhos para a via pública”2. Contudo, no desenvolvimento da doutrina, observa Pontes de Miranda, o conceito de servidão legal seria mais e mais estranho ao direito brasileiro. A figura “englobava limitações ao direito de propriedade (direitos limitativos, direitos por fora do direito de propriedade, portanto nunca direitos sobre coisa, ou gravame de domínio) e relações jurídicas diferentes, que ofereciam dificuldade ao jurista que as queria conceituar e classificar. E continua: Desde que se chegou à maturidade da investigação, caracterizando-se, suficientemente, os direitos limitativos, os direitos formativos geradores de servidão e os direitos de servidão propriamente ditos, o conceito de servidão legal passou a ser inadmissível, e não só incorreto”3. (Destaque nosso). Para o tratadista, o direito de passagem “é, elipticamente, poder contido no direito de propriedade; o dever de tolerar é contido na propriedade do dono do prédio que tem de dar a passagem. Não há pensar-se em servidão legal, conceito já superado; há, precisa e exatamente, limitação e extensão das propriedades em proximidade. O vizinho que tem de passar não exerce direito que grave a outra propriedade; exerce o próprio domínio”4. Os direitos da vizinhança simplesmente limitam o conteúdo do direito de propriedade, diferentemente da servidão convencional, por exemplo, que não limita nem diminui o conteúdo do direito de propriedade, só o restringe no tocante ao exercício. São bastante conhecidas as distinções que Pontes de Miranda faz entre restrição e limitação de direito. A expressão restrição aponta para atos e negócios jurídicos que diminuem o conteúdo dos direitos ou mitigam seu exercício. Os direitos de vizinhança representam uma limitação legal ao direito de propriedade5. As diferenças entre os institutos são muito bem-postas por Washington Monteiro de Barros. Na servidão predial há a sujeição de um prédio a outro – ditos serviente e dominante. Já na limitação de direito de vizinhança a sujeição é recíproca, “sendo os prédios, ao mesmo tempo, servientes e dominantes”. Além disso, como já sustentava Pontes de Miranda, as limitações decorrentes da vizinhança são “imanentes à propriedade” e surgem simultaneamente com o próprio direito6. Portanto, as servidões legais constituem os chamados direitos de vizinhança7. Igualmente esta é a opinião de Caio Mário da Silva Pereira que funda o direito de passagem forçada como expressão do “princípio de solidariedade social”8. Para ele as ditas “servidões legais” são apelidos inadequados9. Enfim, esta distinção, já clássica em nosso Direito, parece estar na base na classificação metodológica adotada pelo nosso Código Civil. Não tem sentido, portanto, falar-se em servidão legal no estágio atual de nossa doutrina. Encravamento – o que seria? Parece haver outra imprecisão no v. acórdão. O ministro que proferiu o voto-vogal aludiu à peculiar situação do imóvel encravado, lançando uma interpretação da expressão bastante original. Segundo ele, “somente o que pode estar encravado em um terreno é uma construção, uma casa, um edifício, ou uma benfeitoria, mas um terreno não pode estar encravado em outro terreno”. Não nos parece correta tal interpretação. O imóvel dito encravado é o “insulado”, na expressão de Lafaiete10, isto é, o que não conta com acesso a via pública, nascente ou porto, nos termos do art. 1.285 do Código Civil em vigor. Lenine Nequete nos esclarece muito bem este ponto: “Para haver encravamento impõe-se que o prédio, confinando ou não com a via pública, a) não tenha saída para ela, nem possa buscar-se uma, ou, podendo, somente a conseguiria (razoavelmente cômoda) mediante uma excessiva despesa ou trabalhos desmesurados; ou b) a saída de que disponha (direta, indireta, convencional ou mesmo necessária) seja insuficiente e não se possa adaptá-la ou ampliá-la – ou porque isto é impossível, ou porque os reparos (com que se obtivesse uma saída não excessivamente incômoda) requereriam por igual gastos ou trabalhos desproporcionados”11. O imóvel encravado não conta com serventia de caminho pelos prédios vizinhos para acesso à via pública. Proprietários distintos O v. acórdão prevê que a passagem forçada há de ser declarada no iter do processo executivo – antes mesmo de consumada a expropriação judicial. Vale o recorte do respeitável voto para maior clareza: “Por último, é de todo prudente sublinhar que, tendo em mira que o objetivo da atividade jurisdicional é pacificar conflitos – e não criar outros -, e também para o sucesso da atividade jurisdicional na execução, previamente à expropriação do imóvel encravado, cabe ao Juízo da Execução delimitar judicialmente a passagem, estabelecendo o rumo, sempre levando em conta, para a fixação de trajeto e largura, a menor onerosidade possível ao prédio vizinho e a finalidade do caminho”. (Voto, grifo nosso). Notem que a lei pressupõe titularidades diversas (art. 1.285 do CC.). Faculta-se ao dono do prévio encravado “constranger o vizinho a lhe dar passagem”. A expressão “vizinho” é o proprietário distinto do prédio próximo a via pública – diz Pontes de Miranda12. A necessidade de existência atual de titularidades distintas parece insuperável. Bastaria que se questionasse: quem será o legitimado ativo na postulação da passagem forçada? O depositário? O exequente? Nem o mero possuidor está legitimado… Salvo melhor juízo, deve-se esperar a consumação da expropriação judicial para que se forme a situação jurídica propiciadora da legitimação ad causam para a postulação da passagem forçada. Passagem forçada – registrabilidade Pergunta-se: a passagem forçada pode ser objeto de registro? A resposta é não. As limitações ao conteúdo do direito de propriedade são irregistráveis. Tal é o caso do direito de vizinhança13. Se a passagem forçada for objeto de inscrição ter-se-á concedido servidão, “que lhe fez as vezes”14. É de Serpa Lopes a melhor doutrina. Segundo ele, baseado na doutrina italiana, em regra as “servidões legais escapam ao registo imobiliário, em geral por lhes faltar conteúdo transcritível e pela sua íntima natureza, atento prescindir de título para sua existência”15. Diz, ainda, que as restrições legais (servidões legais) não se confundem com as servidões prediais, não estando, portanto, subordinadas à inscrição imobiliária16. Aliás, o reconhecimento do direito de passagem, por acordo ou sentença judicial, não prefigura a sua constitutividade. Restrição ou limitação? O advento da lei 13.097/2015 gerou uma discussão acerca da mal chamada concentração na matrícula. A qualificação não é adequada, pois o sistema brasileiro acolhe limitadamente os fatos inscritíveis, cujo rol de referência continua sendo o art. 167 da lei 6.015/1973. Certamente não se constituirá a matrícula uma espécie de repositório universal de todas as vicissitudes dos direitos reais ou daqueles que reclamam a eficácia real. Voltemos nossa atenção ao inciso III do art. 54 da lei 13.097/2015 que prevê a “averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados”. Neste passo, pergunta-se: calharia, neste dispositivo, a disposição judicial de instituição de passagem forçada – como no caso aqui aventado? Penso que não. A expressão “restrição”, como vimos, aponta para atos e negócios jurídicos que diminuem o conteúdo dos direitos ou mitigam seu exercício. Os direitos de vizinhança representam uma limitação legal ao direito de propriedade. Portanto, a situação de iura vicinitatis não é suscetível de registro. Trata-se de emanação do próprio domínio. Penhora de imóvel encravado A matriculação de imóvel encravado não é inédito. Posto seja possível a matriculação de imóvel nessa situação, a inscrição da penhora não representaria maior problema e nem seria necessário esventrar as minúcias do instituto do direito de vizinhança. O próprio Código Civil prevê que a alienação parcial do prédio, “de modo que uma das partes perca o acesso a via pública” obriga o novo proprietário a tolerar a passagem (§ 2º do art. 1.285). O encravamento do imóvel pode ocorrer em virtude de atos de terceiros, como a desapropriação da parte confinante com a via pública, por exemplo, ou em decorrência de divisão, partilha ou expropriação judicial. Diz o mesmo Lenine Nequete que é “indiferente que se trate de alienação voluntária ou forçada: o comprador em hasta pública tem direito à passagem forçada sobre a outra parte do prédio do proprietário executado”17. A jurisprudência registral do Estado de São Paulo, em mais de uma ocasião, tratou do tema da matriculação de imóvel encravado. Permito-me trazer à apreciação o decidido na Ap. Civ. 8.730-0/0, da qual se destaca o parecer elaborado pelo Dr. Aroldo Mendes Viotti: Razão assiste ao apelante: a lei não veda o registro da aquisição de imóvel encravado. A tanto não equivale a disposição do artigo 176, § 1º, II, “a” da L.R.P. até porque é da sistemática registrária e inscrição (registro stricto sensu) das servidões em geral (artigo 167, I, 6, da lei 6.015/73). Acresce que o ingresso do título em exame não inova quanto à situação registrária existente, no que respeita à observância do princípio da especialidade. A tábua predial já consagra a existência de prédio encravado, remanescente de área maior, e injurídico seria obstar-se ao “dominus”, por tal motivo, o exercício da livre disponibilidade sobre o bem. De resto, acertada a ponderação do apelante no sentido de que o registro do título aquisitivo se afigura como condição mesma para o exercício da faculdade prevista no artigo 559 do C. Civil”18. Do mesmo jaez o decidido na Ap. Civ. 573-6/6, cuja ementa é a seguinte: “Registro de Imóveis – Alienação parcial de imóvel – Parte remanescente, que permanecerá sob a propriedade dos vendedores, ficará supostamente encravada – Hipótese que não impede o registro – Além da eventual servidão de trânsito, o Código Civil ainda assegura o direito à passagem forçada – Inteligência do seu artigo 1.285, § 2º – Recurso provido para que o Procedimento de Dúvida seja julgado improcedente”19. Por fim, cite-se o decidido na Ap. Civ. 1.168-6/5, em que se decidiu pela possibilidade de se registrar área encravada: “[N]ada impede que se adquira, por doação ou outro meio, imóvel encravado. Nem que se registre tal aquisição, desde que ele se ache devidamente especializado”20. Conclusão À guisa de conclusão, podemos afirmar que a decisão enfrentou adequadamente o problema posto à apreciação da corte. Todavia, melhor seria ajustar os termos dos institutos, tendo em vista a tradicional civilística pátria, que bem distingue as hipóteses de servidão, direito de vizinha, restrição e limitação da propriedade privada. Fonte: Migalhas.