Recentemente, após o caso do “trisal” — que decidiu ir à Justiça para registrar seus filhos com nomes de três pais — repercutir no noticiário [1], muitas pessoas que outrora não conheciam o tema descobriram a possibilidade de se reconhecer a multiparentalidade. Naturalmente, voltaram à tona algumas dúvidas acerca do assunto.
Portanto, o presente artigo visa reunir, numa exposição geral, alguns temas envolvendo a multiparentalidade. O objetivo desta sistematização é auxiliar o interessado e/ou profissional de Direito a encontrar informações sobre o assunto. Principalmente sobre quais são as formas atuais de se prosseguir com o reconhecimento deste entendimento.
Em linhas gerais, a multiparentalidade não é nada mais que a coexistência da filiação biológica com outro vínculo de filiação construído pelo afeto [2]. O entendimento surgiu após as profundas mudanças ocorridas no Direito de Família, que passou a entender o afeto como parâmetro para definição dos vínculos familiares. O entendimento da multiparentalidade foi acolhido pela primeira vez pelos Tribunais de Justiça dos Estados de São Paulo e de Santa Catarina (AC 64222620118260286 e AC 2011.034517-3), com o objetivo de se reconhecer e legitimar no campo jurídico o que já ocorre (há muito) no mundo dos fatos.
Com a multiparentalidade, deixou-se de utilizar a adoção unilateral [3] como a única possibilidade de inclusão do nome de outro genitor.
- Filiação Socioafetiva
A multiparentalidade tem fundamento legal no artigo 1.593 do Código Civil, que admite a existência tanto da filiação natural, resultante da consanguinidade. Quanto da civil, resultante, entre outros motivos, da socioafetividade.
1.1. O afeto como parâmetro e gerador de vínculo de filiação socioafetiva
Em decorrência das transformações ocorridas no conceito de família, o afeto hoje é reconhecido como parâmetro e até gerador de vínculos familiares, como o de filiação. A razão é simples, conforme leciona Maria Berenice Dias, hoje é notório que a formação de uma pessoa, assim como a construção de seus vínculos familiares, não se define apenas de acordo com postulados racionais e científicos, mas se constroem principalmente a partir do sentimento nutrido pelos participantes dessa relação.
A autora expõe ainda o reconhecimento de que:
“A biologicidade passou a ser vista como uma verdade científica que não traduz a gama de sentimentos e relações que realmente forma a família. O fator que agora impera é a presença do vínculo de afeto. Quem dá amor, zela, atende as necessidades, assegura ambiente saudável, independentemente da presença de vínculo biológico, atende o preceito constitucional de assegurar a criança e ao adolescente a convivência familiar.”
1.2. Dever e possibilidade de proceder ao registro da filiação socioafetiva
Uma vez reconhecida a filiação socioafetiva, é possível o seu registro no assento de nascimento. Neste sentido, encontramos fulcro tanto no ECA
[4]; quanto na Constituição, que estabelece os direitos fundamentais de igualdade
[5] e da personalidade
[6].
Todavia, pode-se argumentar que não há nenhuma previsão legal para o registro, mas embora não haja previsão legal, também não há nenhuma proibição do registro na LRP. Além disso, não se pode fazer a exegese literal do disposto no artigo 54, da LRP, haja vista a necessidade de interpretação conforme os valores constitucionais acima mencionados.
- Implicações jurídicas do reconhecimento da multiparentalidade
Os efeitos jurídicos decorrentes da filiação socioafetiva são os mesmos que advém da filiação consanguínea. Desta feita, havendo filiação socioafetiva, há possibilidade de exercício de todos os direitos dela decorrentes, tais como: alimentos, direitos sucessórios, direito ao nome etc.
Neste mesmo sentido já se manifestou o IBDFAM, em seu enunciado nº 9, colacionado a seguir,
in verbis: “A multiparentalidade gera efeitos jurídicos”.
- Formas de se reconhecer a parentalidade socioafetiva (e multiparentalidade)
Por fim, a parentalidade socioafetiva pode ser reconhecida tanto pela via extrajudicial, quanto judicialmente.
Com a publicação do Provimento 63/2017, o CNJ uniformizou o procedimento de reconhecimento da filiação socioafetiva, e possibilitou que ele se dê diretamente no cartório. Tal ato normativo foi alterado pelo Provimento 83/2019 e hoje permite o reconhecimento da filiação socioafetiva quando preenchidos os seguintes requisitos, haja:
1) Requerimento firmado pelo ascendente socioafetivo, testamento ou codicilo;
2) Documento de identificação com foto do requerente;
3) Certidão de nascimento atualizada do filho;
4) Anuência pessoal de filho/a obrigatoriamente maior de 12 anos de idade;
5) Comprovação da
“posse de estado de filho”.
Além disso, não poderão ter a filiação socioafetiva reconhecida os irmãos entre si, nem os ascendentes.
De acordo com Jacqueline Filgueiras Nogueira (Apud Souza, Carlos Magno Alves de), a posse de estado de filho corresponde à “relação de afeto, íntimo e duradouro, exteriorizado e com reconhecimento social, entre homem e uma criança, que se comportam e se tratam como pai e filho exercitando os direitos e assumem as obrigações que essa relação paterno-filial determina”.
A posse do estado de filho, por sua vez pode ser provada por qualquer meio admitido em Direito, principalmente por documentos, a fim de demonstrar os três critérios da posse de estado de filhos citados pelo ministro Edson Fachin no julgamento do STF, a saber: o tratamento (
tractatio), a reputação (
reputatio) e o nome (
nominatio).
É importante destacar que o Provimento 83/2019 do CNJ limitou a possibilidade de reconhecimento extrajudicial apenas em relação a pessoas maiores de 12 anos (ou seja, o filho deve ser ao menos adolescente, conforme artigo 2º do ECA). Além disso, embora o Provimento 83/2019 reconheça a possibilidade de existência da multiparentalidade (ou seja, registro de dois pais, duas mães etc.), ele limitou o registro extrajudicial na inclusão de apenas um ascendente socioafetivo, seja do lado paterno ou do materno.
Todavia, vale lembrar que em caso de impossibilidade de ser reconhecida a filiação socioafetiva de forma extrajudicial, pode-se sempre prosseguir com o reconhecimento pela Via Judicial.
A multiparentalidade é um entendimento que ainda vem se consolidando, mas sua adoção hoje já é praticamente pacífica.
De qualquer modo, mesmo em se optando pela via extrajudicial, é sempre recomendável consultar antes um advogado especialista, pois ele esclarecerá eventuais dúvidas e saberá a melhor forma de conduzir a pretensão.
Referências bibliográficas
ABREU, Karina Azevedo Simões de. Multiparentalidade: conceito e consequências jurídicas de seu reconhecimento. Disponível em: <
https://karinasabreu.jusbrasil.com.br/artigos/151288139/multiparentalidade-conceito-e-consequencias-juridicas-de-seu-reconhecimento>. Acessado em 31/5/2021.
DIAS, Maria Berenice. Multiparentalidade: uma realidade que a Justiça começou a admitir. Disponível em: <
http://www.berenicedias.com.br/artigos.php?subcat=555#anc>. Acessado em: 31/5/2021.
SOUZA, Carlos Magno Alves de. CNJ cria regras para reconhecimento extrajudicial de filiação socioafetiva. Disponível em: <
https://www.conjur.com.br/2017-dez-03/carlos-souza-cnj-cria-regras-reconhecer-filiacao-socioafetiva>. Acessado em 31/5/2021.
TARTUCE, Flávio. O provimento 83/2019 do Conselho Nacional de Justiça e o novo tratamento do reconhecimento extrajudicial da parentalidade socioafetiva. Disponível em: <
https://www.migalhas.com.br/coluna/familia-e-sucessoes/309727/o-provimento-83-2019-do-conselho-nacional-de-justica-e-o-novo-tratamento-do-reconhecimento-extrajudicial-da-parentalidade-socioafetiva>. Acessado em: 31/5/2021.
[1] https://g1.globo.com/sp/sorocaba-jundiai/noticia/2021/05/09/trisal-decide-ir-a-justica-para-registrar-filhos-com-nomes-de-tres-pais-nosso-direito.ghtml
[2] Segundo o magistrado Maurício Cavallazzi Póvoas (apud ABREU, Karina Azevedo Simões de., 2014), a multiparentalidade seria a “possibilidade jurídica conferida ao genitor biológico e/ou ao genitor afetivo de invocarem os princípios da dignidade humana e da afetividade para ver garantida a manutenção ou o estabelecimento de vínculos parentais”.
[3] Artigo 39, parágrafo 1º, do ECA, tal instituto prevê a exclusão do nome de um dos genitores para a inserção do nome cônjuge ou do companheiro, sob cuja guarda o filho permaneceu.
[4] Que estabelece o princípio do atendimento ao melhor interesse da criança, previsto nos artigos 1º, 3º, 4º 6º e 7º do ECA
[5] O qual assegura, entre outros, a igualdade de tratamento a todos os filhos, reconhecendo e garantindo direitos e qualificações iguais a toda a prole
[6] Vale lembrar que, por serem direitos individuais, ambos os direitos têm eficácia imediata, conforme disciplina o artigo 5º, §1º, da CF.
Fonte: Consultor Jurídico