No que toca à educação, o casamento precoce é responsável por cerca de 30% do abandono escolar feminino e resulta em um nível educacional mais baixo para meninas6. Em relação à saúde, meninas casadas têm menos chances de receber cuidados médicos durante a gravidez e maior risco de complicações graves7; além disso, o casamento precoce responde pelas taxas mais altas de mortalidade materna e infantil8. Por fim, em violação à integridade, a violência doméstica mostra-se frequente: meninas que casam têm probabilidade 22% maior de sofrer violência de seu parceiro íntimo do que mulheres adultas9.
Tal como ocorre mundialmente, o casamento precoce no Brasil afeta majoritariamente meninas, o que demonstra uma desigualdade decorrente do gênero. Ainda, este fenômeno, no contexto brasileiro e em outros países da América Latina, guarda uma peculiaridade: as uniões, em sua maioria, não são forçadas e sim apresentadas como consensuais, além de informais10.
É preciso olhar também para as principais razões que levam ao casamento precoce — fenômeno que, geralmente, é multifatorial. Frequentemente, esses casamentos se apresentam como solução para uma gravidez indesejada, são utilizados como mecanismo de controle da sexualidade feminina, representam uma busca por segurança financeira11 e, ainda, segundo algumas leituras, são uma expressão de vontade das meninas.
Mas será que é mesmo possível dizer que casar-se, tão nova, é uma escolha? Em nosso Brasil, em que as mulheres pretas ou pardas compõem o maior contingente de pessoas abaixo da linha da pobreza, somando 27,2 milhões de brasileiras vivendo com menos de R$ 350 por mês12; em que meninas são massivamente estupradas e que grande parte (cerca de 40%) dos casos ocorre em suas próprias casas por mãos familiares13 e em que mesmo assim o seu direito ao aborto seguro é negado; em que iniciativas como o Escola sem Partido tentam negar o necessário debate sobre desigualdade de gênero nas escolas; em que avança a precarização do investimento público em políticas sociais e especialmente naquelas voltadas à infância e adolescência14 e em que o discurso de ódio às mulheres está tão naturalizado e institucionalizado que é frequentemente proferido em discursos do presidente e de seus auxiliares15, somos livres para escolher? Tal cenário não deixa dúvidas de que não, ao desvelar a estrutura de violências físicas e simbólicas às quais são submetidas nossas crianças, especialmente, nossas meninas.
Em paralelo a isso, o país, felizmente, vem avançando na legislação para coibir os casamentos de crianças e adolescentes. Em 2019, a Lei 13.811 alterou o artigo 1.520 do Código Civil buscando impossibilitar, em qualquer caso, o casamento de menores de 16 anos, superando com isso a possibilidade prévia de casamento a qualquer idade em casos de gravidez. Antes, em 2005, pela Lei 11.106 de 2005, alterou outra exceção: o artigo 107 do Código Penal, a qual autorizava o casamento para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal.
Ainda assim, a despeito de avanços legais, a pergunta acima, sobre a pretensa escolha de casar-se na infância, não pode ser encarada como mero questionamento retórico. É preciso que abramos os olhos para o tanto a desigualdade de gênero, acompanhada e agravada pela raça, pela classe e por outros marcadores sociais, afeta e limita nossas meninas; afinal, escolher entre oportunidades limitadas é falsa escolha. Escolher sem elementos que subsidiem sua “opção” é, tão somente, a imposição de uma lógica patriarcal.
E para garantir que meninas possam exercer seus direitos, ter vez e voz, sonhar e realizar, é fundamental que condições dignas de existência sejam asseguradas a crianças e adolescentes, por meio de serviços e políticas setoriais com financiamento adequado e, ao mesmo tempo, por meio da mudança e responsabilização por discursos que naturalizam e propagam a violência contra meninas e mulheres e tentam nos estagnar em papéis limitadores de nossa humanidade.
1 Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-ago-12/escritos-mulher-humanidades-negociaveis-olhar-infancia-adolescencia
2 Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-set-02/escritos-mulher-portaria-2282ms-infancia-interrompida
3 TAYLOR, A.Y. et al. She goes with me in my boat - Child and Adolescent Marriage in Brazil. Rio de Janeiro, 2015.
4 Idem.
5 Georgetown Law, Center on Poverty and Inequality. Girlhood interrupted : the erasure of Black girls' childhood, 2017. Disponível em: https://www.law.georgetown.edu/poverty-inequality-center/wp-content/uploads/sites/14/2017/08/girlhood-interrupted.pdf.
6 UNICEF. Ending Child Marriage: Progress and Prospects. Nova York, 2014. p. 4.
7 TAYLOR, A.Y. et al. She goes with me in my boat - Child and Adolescent Marriage in Brazil. Rio de Janeiro, 2015. p. 104.
8 UNICEF. Ending Child Marriage: Progress and Prospects. Nova York, 2014. p. 6.
9 KLUGMAN, Jeni et al. Voice and Agency: Empowering Women and Girls for Shared Prosperity. Washington, 2014. p. 77.
10 TAYLOR, A.Y. et al. She goes with me in my boat - Child and Adolescent Marriage in Brazil. Rio de Janeiro, 2015. p. 104.
11 TAYLOR, A.Y. et al. She goes with me in my boat - Child and Adolescent Marriage in Brazil. Rio de Janeiro, 2015. p. 104.
12 IV Relatório luz da Sociedade Civil na Agenda 2030. p11. Disponível em: https://brasilnaagenda2030.files.wordpress.com/2020/08/por_rl_2020_web-1.pdf
13 CERQUEIRA, D; COELHO, D. S. C.; FERREIR, H. Estupro no Brasil: vítimas, autores, fatores situacionais e evolução das notificações no sistema de saúde entre 2011 e 2014. Revista Brasileira de Segurança Pública, São Paulo v. 11, n. 1, 24-48, Fev/Mar 2017.
14 INESC. O Brasil com baixa imunidade: Balanço do Orçamento Geral da União 2019. Brasília, 2020. Disponível em: https://www.inesc.org.br/wp-content/uploads/2020/04/Balanco-OGU-Inesc.pdf
15 Disponível em: http://www.mpf.mp.br/sp/sala-de-imprensa/noticias-sp/mpf-processa-uniao-por-falas-e-acoes-de-bolsonaro-e-ministros-contra-as-mulheres
* Juliana Souza é advogada, ativista antirracista, pós graduada em Direitos Fundamentais e Processo Constitucional (IBCCRIM/Universidade de Coimbra); mestranda do Diversitas/USP e pesquisadora do NAPPLAC da FAU/USP; vice-presidente da Comissão Estadual da Jovem Advocacia da OAB/SP.
* Isabela Minelli D'Andréa é advogada, graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, pós Graduanda em Gestão Pública pela Fundação Escola de Sociologia e Política.
* Thaís Nascimento Dantas é advogada, vice-presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da OAB-SP, conselheira do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; graduada pela Faculdade de Direito da USP, pós-graduada em Políticas Públicas para a Igualdade na América Latina pelo Conselho Latino Americano de Ciências Sociais (Clacso), bolsista do Master in Global Rule of Law & Constitutional Democracy, da Universidade de Gênova.