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Artigo: Registro civil de pessoas jurídicas e a qualificação registral de estatuto social de organizações religiosas – Por Carlos Eduardo Elias de Oliveira

Introdução O oficial de Registro Civil de Pessoas Jurídicas (RCPJ), antes de fazer o registro do ato constitutivo de uma pessoa jurídica (contrato social ou estatuto social), precisa averiguar se o seu conteúdo viola ou não as regras de ordem pública estabelecidas pela legislação. Em outras palavras, o oficial precisa realizar a qualificação registral e, caso  identifique violações às normas de ordem pública, ele deve negar a realização do registro. No caso de associações, o legislador estabeleceu algumas regras de ordem pública que o estatuto precisa observar, tudo com o objetivo de evitar arbitrariedades e conferir um mínimo de proteção a minorias. Citamos estes casos como exemplos: (1) exclusão de associado só por justa causa e com direito a defesa e recurso (art. 57, CC); (2) reserva à assembleia-geral de deliberação sobre destituição de administradores e a alteração do estatuto (art. 59, CC); e (3) direito de um quinto dos associados em promover a convocação da assembleia (art. 60, CC). Há, porém, muitas dúvidas quando tratamos de estatutos sociais de organizações religiosas. Trataremos desse tema no presente artigo para expor que o oficial de RCPJ precisa atentar que, para elas, vigora um regime de grande liberdade por vontade do próprio legislador. Regras gerais sobre organizações religiosas As pessoas jurídicas que exercem atividade religiosa, independentemente da orientação de fé, são consideradas organizações religiosas. A opção do legislador de tratar as organizações religiosas como pessoa jurídica diversa possui cunho político e didático. De fato, o legislador objetivou evitar que os templos em geral tivessem de adaptar-se às inúmeras regras complexas e burocráticas de associação trazidas pelo CC/2002. Almejou, ainda, reconhecer que há um regime jurídico peculiar para elas, com direito a imunidade tributária sobre patrimônio, renda e serviços (art. 150, VI, “b”, CF) e com liberdade de culto (art. 5º, VI, CF). Seja como for, na prática, o funcionamento das organizações religiosas costumam seguir o modelo das associações, embora a elas não sejam exigíveis a adaptação às regras de associação do CC/2002 previstas a partir do art. 53 (art. 2.031, parágrafo único, CC). Liberdade do estatuto social O CC não detalha regras de funcionamento das organizações religiosas, dando liberdade aos seus membros. E foi proposital, do que dá prova o fato de que o parágrafo único do art. 2.031 do CC/2002 ter textualmente excluído as organizações religiosas do dever de adaptar-se ao novo Código. Isso significa que as organizações religiosas não são obrigadas a seguir regras mínimas previstas para as associações. O único limite a que estão expostas são as normas gerais de ordem pública, como as relativas a direitos da personalidade. Por exemplo, em associações, a assembleia geral tem competência para destituir administradores e alterar estatuto por força do art. 59 do CC. Além do mais, em proteção à minoria, 1/5 (um quinto) dos associados possuem direito de promover a convocação da assembleia geral, consoante art. 60 do CC. Trata-se de regras obrigatórias para as associações: o estatuto social delas precisa prever uma assembleia geral com essas competências e assegurar o direito de 1/5 dos associados de promover a convocação da assembleia. Sem essas cláusulas, o estatuto social não pode ser registrado. Não sucede o mesmo em relação à organização religiosa, que não tem de observar essas regras. Seria plenamente legítimo que o estatuto social previsse que a destituição de administradores ou a alteração do estatuto fossem feitas solitariamente pelo chefe religioso (ex.: o bispo fundador da igreja). Aliás, a organização religiosa nem precisaria ter uma assembleia geral: é lícito que todas as decisões da pessoa jurídica sejam tomadas isoladamente pelo chefe religioso. Igualmente, a organização religiosa não precisa assegurar direito de minorias a convocar assembleia geral, se esta houver. O legislador acertou ao dar liberdade para as regras de funcionamento das organizações religiosas. É que o motivo da filiação das pessoas a uma organização religiosa é a fé, que consiste em uma crença acrítica em uma pessoa ou em uma coisa. Os dogmas da fé não são compatíveis com posturas críticas. Quem discordar de algum desses dogmas tem de se afastar e fundar a própria organização religiosa com outros valores de fé. Assim, se, por exemplo, um novo profeta surgisse anunciando-se como o enviado de Deus e ele decidisse fundar uma organização religiosa, não faria sentido algum obrigar que o estatuto social contivesse regras dando poderes a uma assembleia geral, sob pena de chegarmos à absurda conclusão de que a maioria da assembleia poderia destituir esse novo profeta e colocasse, em seu lugar, um outro chefe religioso com outros dogmas de fé. Essa liberdade normativa dada pelo CC às organizações religiosas coaduna com o direito constitucional à liberdade religiosa: postura diversa do CC fatalmente seria inconstitucional. Nem mesmo a regra prevista no art. 57 do CC no sentido de que a exclusão do associado só pode ocorrer com justa causa e com prévio direito de defesa é extensível às organizações religiosas pelo mesmo motivo. O estatuto social poderia licitamente prever que o chefe religioso tem poderes de, sozinho, excluir sumariamente um filiado. Se, no exemplo acima, o novo profeta tiver tido alguma revelação divina de que um dos filiados irá trair a fé ou tivesse recebido uma ordem divina para desligar um filiado, o estatuto poderia prever que esse chefe religioso poderia fazer isso sumariamente e sem prévio contraditório. Isso é questão de fé interna corporis da organização religiosa, de modo que impedir um estatuto social assim feriria o direito constitucional à liberdade religiosa. Seja como for, a liberdade de funcionamento das organizações religiosas não exclui o dever do chefe religioso e dos demais filiados em obedecer a regras de ordem pública, como os relativos a direitos da personalidade. Assim, por exemplo, se o chefe religioso, com base no estatuto social, desligar monocraticamente um filiado da organização religiosa agredindo verbalmente esse filiado, o ato de desligamento é lícito, mas o modo como essa desfiliação foi feita violou o direito à honra do filiado. Nesse caso, o fiel excluído não tem direito a ser reintegrado ao quadro social da organização religiosa, mas, em razão do modo agressivo como se portou o chefe religioso, poderá reivindicar indenização por dano moral. Igualmente, se o estatuto social previr que o chefe religioso poderá matar, espancar ou abusar sexualmente de seus membros, ele não poderá ser registrado por violar normas gerais de ordem pública. Portanto, as organizações religiosas possuem liberdade para desenhar seu estatuto social como lhes aprouver, respeitadas, apenas, as normas gerais de ordem pública. Por fim, alertamos que, na prática, apesar da liberdade normativa, a maior parte das organizações religiosas, como as igrejas evangélicas, os terreiros, os templos budistas etc., costumam adotar um estatuto social com regras muito parecidas com as de associações. Organização religiosa “unipessoal”? Entendemos ainda que a organização religiosa pode ser unipessoal: uma única pessoa poderia instituí-la. Além de o CC não exigir a pluralidade de filiados, a motivação de fé justificaria essa possibilidade. Não há necessidade alguma de o legislador vir a prever uma espécie de “organização religiosa individual”, pois essa hipótese já está contemplada implicitamente no CC. No exemplo acima, o novo profeta poderia, sozinho, instituir uma organização religiosa enquanto pessoa jurídica. Seria inconstitucional exigir que esse novo profeta tivesse de conseguir mais alguém para instituir a organização religiosa, pois isso seria uma restrição indevida ao direito constitucional à liberdade religiosa. Particularidades da igreja católica A Igreja Católica foge à regra por conta de acordo internacional firmado entre o Brasil e a Santa Sé em razão do qual a Igreja Católica possui personalidade jurídica em conformidade com o direito canônico (decreto 7.107/2010). E, nesse sentido, cada Mitra Diocesana é uma pessoa jurídica que representa as igrejas católicas da respectiva diocese. Diocese é uma unidade territorial administrada por um bispo e também pode ser chamada de bispado, área episcopal ou sede episcopal. O papa é quem cria as dioceses e nomeia os respectivos bispos. A Mitra Diocesana é uma espécie de fundação por ser o patrimônio destinado a sustentar o bispado local. A respectiva Mitra Diocesana tem, portanto, capacidade para ser parte em processos judiciais e em negócios jurídicos. Cabe ao bispo diocesano representar a respectiva Mitra Diocesana nos atos jurídicos (STF, RE 21.802/ES, 1ª Turma, Rel. Min. Mário Guimarães, DJ 11/06/1953; STJ, REsp 1.269.544/MG, 3ª Turma, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, DJe 29/05/2015). No Brasil, há várias Mitras Diocesanas, como a de Brasília, a de Patos de Minas, de Mogi das Cruzes etc. Paróquias são circunscrições territoriais dentro de uma diocese, e são administradas pelo pároco, que exerce a sua influência na respectiva igreja, que é o local do exercício de suas atividades. As igrejas não têm capacidade de ser parte em atos jurídicos, e sim a Mitra Diocesana à qual a igreja estiver subordinada. Fonte: Migalhas