O Direito Agrário é um ramo autônomo do Direito de natureza híbrida, na medida em que tutela relação de Direito Privado e de Direito Público, competindo à União, por força do artigo 22, I, da Constituição Federal, legislar sobre a matéria.
Benedito Ferreira Marques [1] afirma que "Remontam aos primórdios da civilização as origens do direito agrário. E não poderia ser outra a constatação, pois que o primeiro impulso do homem foi retirar da terra os alimentos necessários à sua sobrevivência. Depois, quando os homens se organizaram em tribos, tornou-se imprescindível a criação de normas reguladoras das relações entre elas, tendo por objeto o 'agro'. Nascia ali, com tais normas, o ordenamento jurídico agrário".
No começo do século 19, doutrinadores italianos, espanhóis, franceses e latino-americanos começaram a discutir sobre a necessidade de uma sistematização das normas e dos institutos jurídicos relacionados ao Direito Agrário, tamanha a sua importância para normatizar a convivência entre os homens quanto à exploração da terra e dos animais. Atualmente é estatuído pelas Leis nº 4.947/66 (Normas Gerais de Direito Agrário) e nº 4.504/64 (Estatuto da Terra, que codificou os direitos e obrigações no Direito Agrário) e o Decreto Lei nº 59.566/66, que regulamenta o Estatuto da Terra, sendo aplicado o Código Civil nos casos omissos.
Tem-se, assim, que o objeto do Direito Agrário resulta de toda a ação humana orientada no sentido da produção, contando com a participação ativa da natureza, sem perder de vista a necessidade de conservação das fontes produtivas naturais. Não se pode negar que o Brasil é um país eminentemente voltado para as atividades do campo, embora se vislumbre já um grande índice de industrialização.
As atividades exercidas foram crescendo, modernizando e acabaram virando uma potência em nosso país. Por conta da junção de uma cadeia de atividades relacionadas ao campo, como também ao meio urbano, fruto da dependência de atuações industriais e produtivas advindas da cidade criou-se a denominação, hoje mais conhecida, "agronegócio".
O agronegócio representa a concentração de investimentos tanto na produção em si quanto nos elementos que viabilizam ou melhoram a sua execução. Devido ao clima favorável, à extensão do território e à abundância de chuvas que permite colher, em grande parte, duas safras por ano, além de um rápido desenvolvimento dos animais, as atividades relacionadas ao agro têm sido, indene de dúvidas, uma das principais, senão a principal fonte de riqueza da nossa economia nos últimos tempos, representando, inclusive, um dos setores menos atingidos pelo efeito da Covid-19 em 2020, consequentemente, submete inúmeras discussões ao Poder Judiciário acerca dos temas a ele relacionados, ocasionando grandes desafios ao julgador frente ao seu impacto no setor.
Mais especificamente em relação ao contrato de arrendamento rural, uma das modalidades utilizadas com maior frequência, que se assemelha ao contrato de locação de coisas, porquanto tem como objeto a cessão de um imóvel em troca de uma certa retribuição, os artigos 22, §1º, do Decreto-Lei nº 59.566/66 e 95, IV, da Lei 4.504/64 (Estatuto da Terra) estabelecem que na hipótese do arrendante não notificar o arrendatário no prazo de seis meses antes do vencimento do contrato, ele será considerado renovado, automaticamente. O Tribunal de Justiça de Goiás possui relevante julgado sobre o tema:
"APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE MANUTENÇÃO DE POSSE. CONTRATO DE ARRENDAMENTO RURAL. AUSÊNCIA DE NOTIFICAÇÃO EXTRAJUDICIAL. RENOVAÇÃO AUTOMÁTICA. REGRA CONTRATUAL ESPECÍFICA. NÃO CABIMENTO. REQUISITOS DO INTERDITO POSSESSÓRIO. I - O Estatuto da Terra prevê a necessidade de notificação do arrendatário seis meses antes do término do prazo ajustado para a extinção do contrato de arrendamento rural, sob pena de prorrogação automática (art. 95, incs. IV e V, da Lei n. 4.504/64), ainda que as partes tenham pactuado regra alternativa de renovação. II - Ausente a notificação, presume-se prorrogado o contrato de arrendamento rural, o que implica reconhecer a posse justa do arrendatário e, de consequência, merecedor de sua manutenção até o deslinde da avença. APELAÇÃO CONHECIDA E PROVIDA. SENTENÇA REFORMADA" [2].
Além de enviar a notificação dentro do lapso temporal previsto, é necessário constar em seu bojo o motivo, entre eles de que o arrendante pretende retomar o imóvel, para exploração direta ou por intermédio de descendente, sob pena de não ser considerada válida, logo, inexistente, consoante previsão contida no inciso V do artigo 95 do Estatuto da Terra.
Ocorre que tal faculdade tem sido, não raro, exercida de maneira inadequada, já que o arrendante, no intuito de evitar o direito à renovação do arrendatário, promove a notificação arguindo motivo inexistente, com o único objetivo de retirá-lo do imóvel.
Antevendo essa possível manobra, com muita inteligência, eficácia e com grande valor social, o legislador estipulou no artigo 32, VIII, do Estatuto da Terra que, em caso de desconfiança ou mesmo divergência sobre os requisitos de validade da notificação enviada pelo arrendante, pode o arrendatário pode solicitar que a sinceridade do pedido seja demonstrada em juízo, sob o crivo do contraditório, tamanha a importância da continuidade das relações jurídicas dessa natureza, seja pelos altos investimentos normalmente empregados, seja pela necessidade de promover a manutenção daquele que se predispôs a enfrentar os desafios que a atividade rural impõe.
Vejamos alguns julgados que refletem de maneira muita clara essa linha de raciocínio quanto à imprescindível sinceridade na retomada, bem como sobre a possibilidade de o arrendatário exigir seja ela comprovada em juízo:
"A retomada, findo o prazo de arrendamento rural, para que não prevaleçam os direitos assegurados ao arrendatário pelo art. 95, IV, do Estatuto da Terra, deve ser calcada na intenção do proprietário explorar o imóvel, diretamente ou através de descendente seu. Cuida-se de denúncia cheia da locação em que deve vir comprovada em juízo a sinceridade da pretensão (art. 32, VIII, do Regulamento)" [3].
"RECURSO - APELAÇÃO – ARRENDAMENTO RURAL ARRENDAMENTO ENVOLVENDO PARQUE INDUSTRIAL - LOCAÇÃO - CONTRATO ESCRITO - AÇÃO DE DESPEJO. Exploração direta de imóvel. Sinceridade do pedido. Não comprovação. Inadmissibilidade. Exegese do artigo 32, inciso VIII, do Decreto no. 59.566/66. A pretensão de retomada em arrendamento não vem resguardada pela presunção de sinceridade. Ao revés, o inciso VIII do artigo 32 do Decreto no. 59.566/66, exige a comprovação em juízo da sinceridade do pedido, o que não ocorre na hipótese. Improcedência. Sentença Mantida. Recurso não provido" [4].
"ARRENDAMENTO RURAL - Despejo - Prova de sinceridade - Necessidade - Aplicação do art. 32 do Dec. 59.566, VIII. A pretensão de retomada em arrendamento não vem resguardada pela presunção de sinceridade. Ao revés, o inc. VIII do art. 32 do Dec. 59.566, exige a comprovação em juízo da sinceridade do pedido" [5].
O Direito Agrário e, por consequência, os seus institutos, como é o arrendamento, têm duas características essenciais. A primeira delas é a imperatividade de suas regras, ou seja, significa dizer que existe uma forte intervenção do Estado nas relações vinculadas a esse tipo de contratação, de modo que os sujeitos dessa relação quase não têm disponibilidade de vontade, tendo em vista que grande parte das disposições já estão estabelecidas em lei, cuja aplicação é obrigatória. Essa característica visa equilibrar o vínculo entre as partes, como medida protetiva àquele que se dispõe a explorar a terra, assumindo os riscos do negócio. A segunda característica é de que as regras do Direito Agrário e, por conseguinte, do arrendamento, são sociais, é dizer, estão revestidas de forte proteção social.
José dos Santos Pereira Braga [6] observa tais características e destaca algumas hipóteses de limitação:
"(...) Por razões de inegável interesse público, o Estatuto da Terra fixa condições obrigatórias irrenunciáveis para os contratos de arrendamento. Deixando à regulamentação o complemento necessário, o legislador ditou cláusulas que devem ser tidas como existentes e pactuadas em todos os contratos de arrendamento, escritos ou verbais (art. 95, inciso IX). As condições impostas às partes, por força de lei, consubstanciam as seguintes restrições à autonomia da vontade: ) limites de preços de aluguel e forma de pagamento em dinheiro ou seu equivalente em produtos colhidos; b) prazos mínimos de locação e limites de vigência para os vários tipos de atividades agrícolas; c) bases para as renovações convencionadas; d) formas de extinção ou rescisão; e) direito e formas de indenização ajustadas quanto às benfeitorias realizadas".
A par de tudo isso, a sinceridade no pedido de retomado do imóvel objeto do arrendamento, embora se revele controvertida, precisa ser levada a sério, pois representa uma proteção do arrendatário e, nessa condição, demanda muita cautela das partes e do julgador no momento de aplicar a regra em comento.
Note-se que o legislador inverteu o ônus probatório quanto à demonstração da sinceridade do pedido de retomada, ou seja, ficará sob a responsabilidade do arrendante comprovar, de maneira cabal, que o imóvel será explorado por ele ou por seus familiares, podendo o arrendatário fazer contraprova a esse respeito, como meio de tentar impedir a retomada, em busca de uma renovação compulsória.
Ao final, ficando satisfeito o magistrado com os elementos apresentados pelo arrendante, a notificação será considerada válida, para fins do artigo 22, §1º, do Decreto-Lei nº 59.566/66 e artigo 95, IV, da Lei 4.504/64 (Estatuto da Terra), de modo que o arrendatário será obrigado a desocupar o bem, no prazo estipulado no contrato para o respectivo encerramento, sob pena de se sujeitar aos encargos da inadimplência e eventual ação de despejo. Por outro lado, sendo superficial o acervo carreado pelo arrendante, portanto, incapaz de convencer o magistrado quanto à sinceridade do pedido de retomada, a notificação promovida será tida como inválida, gerando, corolário lógico, a renovação automática do contrato, tal como preleciona os citados dispositivos legais.
O Superior Tribunal de Justiça [7] de há muito segue essa linha:
"Declarada a ineficácia da notificação dirigida pelos arrendadores ao arrendatário, considera-se o contrato renovado automaticamente. A renovação importa em nova vigência do contrato com todas as suas cláusulas, inclusive a concernente ao prazo, que permanece determinado. Recurso especial conhecido, em parte, mas improvido."
Como visto, a boa-fé e o princípio da função social do contrato se mostram presentes com uma carga valorativa elevada nas relações de Direito Agrário, exigindo das partes, ao tentarem encerrar a pacto jurídico de arrendamento dantes firmado, responsabilidade, equilíbrio e, principalmente, sinceridade.
[1] Direito Agrário Brasileiro, 11ª ed., p. 01. [2] Apelação Cível n.º 03811684020188090087, Relator: JAIRO FERREIRA JUNIOR, Data de Julgamento: 21/11/2019, 6ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ de 21/11/2019. [3] Ap. Sum. 215.265-2, Rel. Juiz ALVES BEVILACQVA JTACSP-RT108/437. [4] TJSP – Apelação Cível n.º Apelação com revisão nº 0000285- 07.2010.8.26.0369, 25º Câmara de Direito Privado, rel. Marcondes D’ Ângelo, j. 12/12/12. [5] Ap. s/ Rev. n.° 212.869-0, Rel. Juiz RICARDO BRANCATO - JTACSP-RT 108/437. [6] Direito Agrário Brasileiro. Coord. Raymundo Laranjeira. São Paulo: LTr, 1999, pág. 346. [7] REsp 56.067?PR, Rel. Ministro BARROS MON* Augusto César Guerra Vieira é advogado, sócio do Escritório Vieira & Guerra Advogados, membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/MS, mestrando em Função Social do Direito pela Faculdade Autônoma de Direito, pós-graduado em Direito Público pela Universidade Católica Dom Bosco em convênio com a Escola Superior da Magistratura de Mato Grosso do Sul e pós-graduado em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Católica Dom Bosco.
* Daniel Henrique Zanichelli é advogado, sócio do escritório Cassoli e Zanichelli Sociedade de Advogados, associado Fundador do Instituto Brasileiro de Direito e Ética Empresarial, mestrando em Função Social do Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo, pós-graduado lato sensu em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas, pós-graduado lato sensu em Direito Processual Civil pela PUC/SP e foi membro do Conselho Fiscal de agosto de 2015 a agosto de 2017.
Fonte: Consultor Jurídico (ConJur)