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Artigo: A relevância da hipoteca na circulação de riquezas — Parte 2 – Por Fernando Keutenedjian Mady

Para ler a parte 1 do artigo clique aqui. Hipoteca em loteamentos e imóveis em regime de condomínio edilício Se a constituição de hipoteca recair sobre o imóvel-base, em parcelamentos do solo ou nele se instituir condomínio edilício, o credor, o devedor ou os donos terão o direito potestativo de requerer ao juiz a divisão do ônus sobre cada lote ou unidade autônoma, obedecida a proporção de cada um dele e o crédito (CC, artigo 1.488)  [1]. Cabe a ressalva de que, até a emissão da “carta de habite-se”, as averbações e os registros relativos ao imóvel, em nome do proprietário ou adquirente, referentes a direitos reais de garantias, cessões ou demais negócios jurídicos que envolvam o empreendimento, serão realizados na matrícula de origem do imóvel e em cada uma das matrículas das unidades autônomas eventualmente abertas. A cobrança de custas e emolumentos desses atos pelo registrador será considerada ato de registro único, não importando a quantidade de unidades autônomas envolvidas ou de atos intermediários existentes, ou então se for a inscrição da instituição de condomínio ou da especificação do empreendimento (LRP, artigo 237-A). Em reforço à situação específica, a Lei nº 11.977, de 2009, adicionou essa isenção à Lei de Registros Públicos, porquanto a hipoteca é a mesma, incidente sobre os inúmeros imóveis resultantes do imóvel-base. Desse ponto, ressalta-se que a potestatividade do direito é indicação de inaplicabilidade da prescrição, sendo esta faculdade permitida enquanto recair a hipoteca sobre o imóvel. A eventual alienação em nada afetará o direito real do credor hipotecário, já que é da essência do ius in re aliena a aderência ao bem, protegida pelo direito de sequela. Porém, tornaria às partes — credor, devedor e adquirente — a quantia pecuniária a ser restituída proporcional e individualizada, atendendo aos valores da função social e do equilíbrio contratual [2]. O desmembramento da hipoteca dá-se por convenção ou decisão judicial. Formaliza-se fólio real, fundado em escritura pública, outorgada pelo dono do imóvel gravado — ou seu adquirente — e o credor e a registrada. Em paralelo, a via judicial dependerá do requerimento das mesmas partes, incluído o promitente comprador, de divisão do ônus sobre os lotes e as unidades autônomas, obedecida a sua proporção de cada um e o valor total da dívida. A repartição não é pro rata, senão pautada no valor individual de cada unidade ou lote. A discordância com a importância levará à avaliação judicial. O credor em contestação pode se opor provando que a medida resultará em redução da garantia real. Autorizada a medida, será emitido mandado judicial e registrado na tábula (CC, artigo 1.488, §2º). Fundamentado na aplicação da função social da propriedade e dos contratos, o legislador criou essa faculdade às partes, porquanto o titular do empreendimento, frente à apontada via dar destinação econômica e social ao empreendimento, podendo aliená-las a terceiros, sem o risco de serem obrigado ao pagamento integral do débito [3]. A sua aplicação, inclusive, produziu os seus efeitos nas relações jurídicas em curso no início da vigência do Código Civil (aplicação do artigo 2.035, o qual reforça a retroatividade da presente cláusula aberta) [4]. É o entendimento da jurisprudência dos tribunais superiores, em especial o Superior Tribunal de Justiça (STJ) [5]. Urge, neste ponto, ressaltar a Súmula nº 308 da corte contemplada, que retirou a reputação e o uso corrente do retratado ius in re aliena. O equilíbrio contratual entre proprietários, empreendedores, adquirentes e credores desarmonizou-se devido à sua intromissão. No contexto fático, os incorporadores e loteadores tomavam empréstimos junto a instituições financeiras, hipotecando o imóvel base, ou então, unidades autônomas ou lotes, em conjuntos residenciais ou comerciais postos no mercado imobiliário. Por meio da publicação do verbete, em 25 de abril de 2005, em decorrência de entendimento consolidado, tornou-se ineficaz o direito real de hipoteca, estipulada entre construtor e financiador, perante adquirentes do imóvel, seja posterior ou anterior à celebração do compromisso ou contrato de compra e venda. A consolidação da súmula se sedimentou ao longo de reiterados julgamentos, v.g.,“CIVIL E CONSUMIDOR. IMÓVEL. INCORPORAÇÃO. FINANCIAMENTO. SFH. HIPOTECA. TERCEIRO ADQUIRENTE. BOA-FÉ. NÃO PREVALÊNCIA DO GRAVAME. 1 – O entendimento pacificado no âmbito da Segunda Seção deste STJ é no sentido de que, em contratos de financiamento para construção de imóveis pelo SFH, a hipoteca concedida pela incorporadora em favor do Banco credor, ainda que anterior, não prevalece sobre a boa-fé do terceiro que adquire, em momento posterior, a unidade imobiliária. Súmula 308 do Superior Tribunal de Justiça. 2 – Agravo regimental não provido” (AgRg no Ag 664.695/RJ, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julg. 02/08/2005, DJ 22/8/2005) [6]. Portanto, o credor perdeu o seu direito de sequela, decorrente da aderência e oponibilidade erga omnes do registro. Tornou-se, com efeito, a hipoteca um direito limitado na aplicação de sua divisibilidade nessas hipóteses. A súmula impede a entidade financeira de, caso ocorra o descumprimento das prestações da obrigação garantida por hipoteca, buscar satisfação de seu crédito, por meio de execução das hipotecas constituídas sobre lotes e unidades autônomas, se o empreendedor estiver insolvente ou inadimplente. É importante ressaltar que essa quantia, no caso do comprador ou promitente comprador, seria proporcional ao valor do lote ou da unidade. Desse modo, não alcançava o valor do empreendimento integral, dívida da construtora, da incorporadora, do loteador, enfim, do empreendedor. Sem poder buscar o crédito em sua garantia foram obrigadas a migrar para alienação fiduciária. A propriedade fiduciária retira a sua disponibilidade do fiduciante e transmite-a de modo resolúvel ao credor-fiduciário, ou seja, estará afetado o bem ao débito. A posse direta e o direito real de reaquisição, subordinado ao pagamento da dívida é o que lhe restará. Por isso, é vedada do mesmo modo a instituição de novos gravames sobre o bem, que perde a capacidade de garantir outras obrigações creditícias e direcioná-las à produção e à geração de riquezas, enfim, novos negócios. Isso porque perde a capacidade especial, diferentemente da hipoteca, que lhe permite alienar o bem, sendo nula proibição de sua venda, salvo em situações extraordinária no Sistema Financeiro de Habitação e a cédulas de crédito rural, industrial, comercial e a exportação, que tem regramento próprio. Em momento posterior, as novas decisões do STJ refinaram a aplicação da Súmula nº 308. Os ministros, atentos aos efeitos deletérios nas relações jurídicas, revisitaram o tema. Inicialmente, se especificou que o verbete somente poderia ser empregado a financiamentos para aquisição de moradia pelo SFH, revitalizando, assim, o direito de sequela do credor e a supremacia da hipoteca e a sua ambulatoriedade. Cita-se, v.g., o Agint no Agint no Resp. nº 1.672.434/PR, relator ministro Lázaro Guimarães, em que aduz não ser aplicável a Súmula 308/STJ nas hipóteses envolvendo contratos de aquisição de imóveis comerciais, portanto não submetidos ao Sistema Financeiro de Habitação (SFH). Mesmo comprovada a boa-fé do terceiro adquirente, tal não é bastante para afastar a hipoteca firmada como garantia ao financiamento imobiliário de caráter comercial [7]. O desenvolvimento no entendimento se ampliou, sendo aplicável à alienação fiduciária à ineficácia da hipoteca perante o adquirente do imóvel. A emergência do presente se deu em decisão proferida no Recurso Especial nº 1.837.203/RS, relatado pela ministra Nancy Andrighi, da 3º Turma do STJ. Pelo voto a ministra explicitou que a intenção da Súmula 308/STJ é a de proteger, propriamente, o adquirente de boa-fé que cumpriu o contrato de compra e venda do imóvel e quitou o preço ajustado, até mesmo porque este possui legítima expectativa de que a construtora cumprirá com as suas obrigações perante o financiador, quitando as parcelas do financiamento e, desse modo, tornando livre de ônus o bem negociado [8]. Em que pese o equívoco no uso do verbete em comento, para o fim de interpretar institutos de natureza e efeitos tão distintos — hipoteca e alienação fiduciária — , a decisão igualou, a partir de analogia, a ineficácia da garantia aos promitentes compradores, de lotes ou unidades autônomas. Ser-lhe-ão ineficazes às garantias oferecidas a credores por empreendedores, antes ou após à aquisição de imóvel para fins de moradia pelo SFH. É importante frisar que o empreendedor do SFH, devedor-fiduciante, está sujeito ao risco da atividade (inadimplemento do comprador, adversidades no mercado de insumos e de trabalho, em relação a tributos em geral etc.), como igualmente à dívida do credor-fiduciário. Assim, é titular de direitos de reaquisição em relação a este e com obrigação de entrega, sob multa e juros pelo atraso da obra, fixados pela Lei do Distrato. O devedor hipotecário e empreendedor pelo SFH terá um plus, a titularidade do imóvel hipotecado lhe dá opções de alienar à obra a terceiros, com as acessões e benfeitorias, ou, ainda, hipotecar novamente ou instituir ou gravame [9]. Conclusão A evolução das garantias sobre imóveis foi contínua no Direito Comparado. A sua criação no Brasil se deu pela Lei Hipotecária, em conjunto ao registro geral. Adaptou-se a diversas realidades com peculiaridades distintas. Até as decisões dos tribunais superiores e a publicação da Lei do Sistema Financeiro Imobiliário e o retorno da fiducia. Apesar de a alienação fiduciária proporcionar maior segurança ao crédito e excussão do bem dado em garantia para a sua satisfação no sistema jurídico vigente, é extremamente gravosa à circulação de riquezas, a base da economia. Ao reter a propriedade fiduciária, o credor gera uma enorme entropia na capacidade de combinar recursos de empreendedores e investidores para se galgar a novas fronteiras. A hipoteca é uma garantia mais versátil aos contratos. Mantém a disponibilidade do imóvel ao seu titular na matrícula e permite novos negócios no mercado, como transmissões do bem a terceiros, ciente do gravame. Diante do direito de sequela do credor, as novas alienações ou onerações ao bem são convencionadas, como a instituição de nova hipoteca, penhor sobre móveis contidos no bem de raiz, anticrese e até alienação fiduciária, com ampla segurança no tráfego garantida pelos princípios da publicidade dos direitos reais e concentração dos atos na matrícula (CC, artigo 1.245, e Lei nº 13.097, de 2015). A alienação fiduciária, em oposição, retira a disponibilidade do bem e a sua potencial transmissibilidade no mercado, pois há a transferência da propriedade resolúvel ao credor, não permitindo ao devedor novas oneração ou transmissões, salvo se autorizado por aquele. Em locações, v.g. depende de anuência do accipiens, do contrário será ineficaz à locação pactuada por período superior a um ano (Lei nº 9.514, de 1997, artigo 37-B) Nesse ponto, ressalta-se o efeito deletério ao consumidor e ao empreendedor na perda de meios de busca dos créditos, como na crise econômica e na atual pandemia da Covid-19. O risco no início de atividades empresariais também aumento, porquanto o instrumento de busca de recursos está refém de um crédito que, em certas situações, é irrisório comparado ao imóvel afetado. Em concurso de credores, o bem imóvel não participa com demais credores pelo crédito imobiliário, enquanto a hipoteca respeita os débitos trabalhistas e extraconcursais (Lei 11.105, de 2005, artigo 83, II). O justo direito à restituição créditos bancários seria mais importante que aqueles originários de relação trabalhista, tributos ou da própria massa falida em se de processo de falência? A solução apresentada é cancelar ou restringir a aplicação da Súmula 308 do STJ, para que a hipoteca volte a ser eficaz contra terceiros, em regra, sendo restrita exclusivamente ao crédito público do SFH. Essa medida aumentaria a sua utilização em empreendimentos de loteamento e condomínio edilício. Em consequência, a hipoteca vinculará o lote ou a unidade autônoma, em quantia restrita ao valor do imóvel, e não ao débito do adquirente, tal qual almejará o legislador civil ao publicar o Código Civil de 2002. Fortalecerá o crédito, pois inúmeros compradores serão devedores em quantia proporcional ao valor do lote ou unidade autônoma adquiridos, mantendo-se o empreendedor vinculado ao débito. Se houver resquício, após a extinção da garantia, ser-lhe-á imputado o débito, garantido pelo seu patrimônio integral. O desmembramento do ônus não exime da responsabilidade pessoal pela quantia creditícia que sobrepujar o valor do bem (CC, artigo 1.488, §3º). Cumpre ressaltar que essa medida fortalece o equilíbrio contratual, atende à função social da propriedade e o direito à moradia e mantém as partes do negócio — seja parcelamento do solo ou condomínio edilício, a entidade financeira e o comprador-consumidor. Alicerçado, pois, na função econômico-social da hipoteca e o acesso ao crédito, bem como o direito à moradia e aos valores da ordem econômica (CF, artigos 5º, XXIII, 6º e 170) . Em que pese o equívoco do verbete em comento, interpretando divergente da natureza e das finalidades assecuratórias da hipoteca, a partir de entendimento do STJ será aplicável do mesmo modo à alienação fiduciária. A decisão, ao menos, igualou às condições. O fundamento da decisão foi analogia, impondo a ineficácia da garantia aos promitentes compradores, de lotes ou unidades autônomas. Ser-lhe-ão ineficazes as garantias oferecidas a credores por empreendedores, antes ou após a aquisição de imóvel para fins de moradia pelo SFH. É importante frisar que o empreendedor, devedor-fiduciante, está sujeito ao risco da atividade (inadimplemento do comprador, adversidades no mercado de insumos e de trabalho, em relação a tributos em geral etc.), como igualmente à dívida do credor-fiduciário. Assim, é titular de direitos de reaquisição em relação a este e com obrigação de entrega, sob multa e juros pelo atraso da obra, fixados pela Lei do Distrato. Por todo exposto, é evidente que o devedor hipotecário terá um plus. A titularidade do imóvel hipotecado lhe dá opções de alienar à obra a terceiros, com as acessões e benfeitorias, ou hipotecar novamente ou instituir espécie distinta de gravame. Outra medida seria a abertura da excussão do imóvel na hipoteca pela via extrajudicial, como já se discute no Congresso Nacional. É urgente a modernização da legislação hipotecária, sendo digno de aplausos a Lei 13.986, de 2020, que modernizou o crédito agrário. A edição da hipoteca reversa, em que o titular confere a propriedade a instituição que lhe garantirá rendimentos durante um período, mantendo o domínio sobre o bem. A experiência imanente ao Direito romano deve prevalecer. A fiducia é prejudicial ao devedor, ao empreendimento e à coletividade. [1] LOUREIRO, Francisco Eduardo. In: PELUSO, Cezar. Op. cit., 2020, p. 1.568. [2] SIMÃO, José Fernando. Prescrição e decadênciainício dos prazos. São Paulo: Atlas, 2013, p. 156 e ss. [3] Sobre a cláusula da função social recomenda-se: AZEVEDO, Antônio de Junqueira. In: Princípios do novo direito contratual e desregulamentação do mercado – direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento – função social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para inadimplemento contratual. Revista dos Tribunais, ano 1987, v. 750, abril de 1998, p. 113-120. [4] COMPARATO, FÁBIO. Função social da propriedade dos bens de produção. In: Direito empresarial: Estudos e pareceres. 1. ed. 2. tir. São Paulo: Saraiva, 1995. [5] REsp 691.738/SC, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, julg. 12/05/2005, DJ 26/09/2005, p. 372. [6] REsp 593.474/RJ, Rel. Min PAULO DE TARSO SANSEVERINO, 3ª Turma, julg. 16/11/2010, DJe 01/12/2010. [7] AgInt no AgInt no REsp n. 1682434/PR, Quarta Turma, julgado em 28.11.2017, DJe 04.12.2017. Mesmo entendimento nos AgInt no AREsp n. 825383/RS , Processo n. 2015/0310193-8; Julgamento em 11.09.2018, DJe 17.09.2018; STJ – AgInt no AgInt no REsp 1682434-PR, REsp 427410-RS, REsp 651323-GO. [8] (REsp 1837203/RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, julgado em 19.11.2019, DJe 22.11.2019) [9] Lei nº 13.786, de 17.12.19, a denominada “Lei do Distrato”, alterou as Leis n º 4.591, de 16.12.1964, e 6.766, de 19 .12.1979, para disciplinar a resolução do contrato por inadimplemento do adquirente de unidade imobiliária em incorporação imobiliária e em parcelamento de solo urbano. Fonte: Consultor Jurídico