A virtualização das relações sociais e econômicas transformou temas que um dia foram considerados periféricos em questões estratégicas para o Direito. Uma delas, abordada no contexto da Medida Provisória 996/2020 (que trata do Programa Casa Verde e Amarela) é o financiamento e custeio da implantação do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis no Brasil. Vale prestar atenção nos objetivos que animaram a iniciativa do parlamento, apoiada pelos registradores brasileiros, que recepcionou e aprovou emenda que trata do financiamento do ONR (Operador Nacional do Registro Eletrônico de Imóveis) e do SREI (Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis), figuras criadas pela Lei 13.465/2017. As questões versam basicamente sobre a pertinência temática da emenda acolhida na Câmara, o custeio do sistema registral eletrônico e a suposta violação da Lei Geral de Proteção de Dados pelos ditos organismos. Penso que a sociedade brasileira busca e reclama transparência e lealdade no debate político. As respostas dadas ao jornalista, abaixo reproduzidas na íntegra, com alguns pequenos reparos e adendos, buscou colocar as coisas nos seus devidos lugares. Buscamos tornar mais clara e transparente a iniciativa do IRIB, acolhida pela Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça. O projeto ONR/SREI teve início e se desenvolveu, desde o começo da década de 2010, sob os auspícios do CNJ, chegando à maturidade com a sua consagração na MP 759/2016, depois convertida na Lei 13.465/2017. Faltava ainda um ajuste fino e ele veio por intermédio da emenda acolhida pelo relator da matéria, deputado Isnaldo Bulhões Jr. (AL). Adjuntaram-se ao artigo 76 da Lei 13.465/2017 os seguintes parágrafos: §8° Fica criado o fundo para a implementação e custeio do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (SREI), que será gerido pelo Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (ONR) e subvencionado pelas unidades do serviço de registro de imóveis dos Estados e do Distrito Federal referidas no §5° integrantes do SREI e vinculadas ao ONR. §9° Caberá ao agente regulador do ONR referido no §4° regulamentar a receita do fundo para a implementação e custeio do registro eletrônico de imóveis, estabelecer as cotas de participação das unidades de registro de imóveis do país, fiscalizar o recolhimento e supervisionar a aplicação dos recursos e as despesas do gestor, sem prejuízo da fiscalização ordinária e própria como for prevista nos estatutos”[1]. (NR) Para modernizar o Registro Imobiliário brasileiro de forma a torna-lo mais rápido, eficiente e seguro, cabe responder algumas questões básicas. Quais sejam: Qual o papel desempenhado pelo IRIB na aprovação da emenda? O IRIB dedica-se ao tema do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico desde o advento da Lei 11.977/2009. Já se vão mais de dez anos! Atuei na comissão científica, presidida pelo CNJ, que laborou na especificação do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis, projeto coordenado pelo Laboratório de Sistemas Integráveis Tecnológico, entidade científica de referência no país, integrada por engenheiros da Poli-USP em parceria com juristas — magistrados e registradores imobiliários. Em 2017, a Lei 13.465/2017 criaria o Operador Nacional do Registro Eletrônico de Imóveis, encarregado de dar efetividade aos projetos já especificados e que não haviam sido implementados. Por que a emenda foi incluída numa MP que tratava de outro assunto? Não se trata de outro assunto. Há inteira pertinência temática da dita emenda com os dispositivos contemplados na Medida Provisória 996/2020. Basta verificar que a norma legal consagrou vários dispositivos aos Cartórios de Registro de Imóveis. A instituição do Registro Imobiliário desempenha um papel relevantíssimo no contexto da titulação da propriedade e da regularização fundiária — não só em relação à emissão dos títulos de propriedade e de outros direitos reais, mas em face de documentos oriundos da regularização fundiária urbana e rural. A lei 13.465/2017, alterada pela MP, já fazia expressa menção de que o “procedimento administrativo e os atos de registro decorrentes da Reurb serão feitos preferencialmente por meio eletrônico, na forma dos arts. 37 a 41 da Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009” (parágrafo 1º do artigo 76 da Lei 13.465/2017). A própria MP 996/2020, com a redação votada e aprovada no Congresso Nacional, traz em sua epígrafe a indicação de alteração da Lei 13.465/2017, diploma que criou o ONR/SREI. A pertinência temática é, portanto, evidente e inquestionável. Não custa lembrar que a matéria passou pelo crivo da mesa diretora da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, o que abona a iniciativa. Qual a importância da criação deste fundo? Desde 2009, com a advento do Programa Minhas Casa, Minha Vida (Lei 11.977/2009), os registradores receberam diretamente da lei a incumbência de instituir o Registro de Imóveis eletrônico (artigo 37). Todavia, não havia previsão legal dispondo sobre o custeio para a criação e operação da plataforma eletrônica que acolheria o SREI. Passada mais de uma década e o sistema não se implantava por essa justíssima razão. Grassava vistosa assimetria regulamentar, sem definição uniforme de padrões de interoperabilidade, sem governança institucional. Em boa hora o legislador cuidou de prever a criação de um fundo destinado à implementação e custeio do SREI, fundo esse “que será gerido pelo ONR e subvencionado pelas unidades do serviço de registro de imóveis dos Estados e do Distrito Federal”. A iniciativa se coordena com o disposto no parágrafo 4º do artigo 76 da Lei 13.465/2017, que criou a figura do “agente regulador” indicando a Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ. Note-se bem: serão os próprios registradores que vão custear o sistema. É sua obrigação legal (artigo 37 da Lei 11.977/2009). Não será a administração (Estado), não será o mercado, não será o crédito imobiliário e, principalmente, não será o cidadão, consumidor dos serviços públicos, que deverá custear a modernização do sistema registral. Qual seria o valor pago pelos cartórios e quanto o fundo arrecadaria por ano? A fixação da contribuição será definida pela Corregedoria Nacional de Justiça (agente regulador do ONR) que disciplinará a “instituição da receita do fundo para a implementação e o custeio do registro eletrônico de imóveis”, estabelecendo as cotas de participação das unidades de registro de imóveis do País e fiscalizando o recolhimento. Caberá à Corregedoria Nacional de Justiça supervisionar a aplicação dos recursos e as despesas do gestor, sem prejuízo da fiscalização ordinária e própria como for prevista nos estatutos (parágrafo 10º do art. 76 do projeto votado pelo Congresso Nacional). A regulamentação, a cargo do Poder Judiciário (CNJ), levará em consideração as circunstâncias de cada serventia do país, a capacidade contributiva de cada cartório, fixando o valor das cotas correspondentes e fiscalizando a correta aplicação dos recursos. A criação desse fundo não poderá implicar repasse dos custos de cartórios para o consumidor final? Absolutamente, não! O CNJ vedou, expressamente, sob pena de responsabilidade, o repasse de custos para a prestação de serviços por meios eletrônicos. O Provimento CN-CNJ 107/2020, fixou um claro e límpido comando: é proibida a cobrança de qualquer valor do consumidor final relativamente aos serviços eletrônicos em todo o território nacional, “ainda que travestidas da denominação de contribuições ou taxas, sem a devida previsão legal” [2]. Não se deve esquecer que é obrigação legal do registrador imobiliário prestar os seus serviços de modo rápido, seguro, eficiente e com qualidade satisfatória. Essa obrigação acha-se inscrita na própria Lei 8.935/1994 (é a redação do seu artigo 38). O Poder Judiciário, na condição de agente regulador, zelará para que a modernização do sistema de Registro de Imóveis se realize sem qualquer tipo de repasse aos usuários. Por outro lado, formou-se entre os registradores imobiliários a firme convicção de que os serviços prestados por meios eletrônicos não podem ser mais custosos do que os realizados fisicamente no balcão das serventias. Essa é a lógica da economia digital. Os cartórios de Registro de Imóveis brasileiros não haverão de se forrar ao desafio de promover a universalização do acesso por meios eletrônicos, inscrevendo a vetusta e centenária instituição do Registro de Imóveis no século XXI. Tudo isso haverá de se consumar sem qualquer tipo de custo adicional que possa ser repassado aos usuários. Por derradeiro, não é possível criar taxas adicionais para custeio de tais serviços sem expressa disposição legal. Os cartórios simplesmente não podem “repassar custos” aos usuários finais, dada a natureza pública da atividade por eles exercida. A regra vem consagrada na própria Constituição Federal (parágrafo 2º do artigo 236) e na Lei Geral de Emolumentos (Lei 10.169/2000). Há uma ação judicial suspendendo a criação do SREI, por suposta violação da Lei Geral de Proteção de Dados. Como o IRIB responde a isso? A suposta violação da LGPD não ocorrerá por motivos muito singelos que devem ser apreciados e relevados pelo intérprete desarmado. Além disso, não há qualquer decisão judicial “suspendendo a criação do SREI”, como se verá logo abaixo. Toda a documentação técnica foi exaustivamente discutida e aprovada pelo próprio Conselho Nacional de Justiça (desde a Recomendação 14/2015[3]) e nela não se encontrará qualquer referência a concentração de dados de caráter pessoal nos repositórios do ONR/SREI[4]. A suposta violação da LGPD não passa de um temor desarrazoado. O SREI parte do pressuposto de que os dados dos Registros Imobiliários brasileiros devem ser descentralizados, evitando, tanto quanto possível, a sua retenção, concentração e tredestinação pelos nós do sistema. Temos no Brasil um belo modelo conceitual de dados distribuídos que favorece a proteção de dados pessoais — privacy by design. A regra se acha inscrita na própria Lei 6.015/1973 (artigos 22 e seguintes) e na Lei 8.935/1994 (artigo 46). A concepção, consagrada na Carta de 1988, de fracionamento e dispensação de competências registrais para cada delegatário em caráter pessoal, acarreta a descentralização de dados e representa afinal uma grande vantagem em relação aos modelos concentracionários de dados (registros centralizados). Entre os modelos de concentração e os de distribuição de dados, o SREI acolheu a segunda alternativa, afinado com as melhores tendências tecnológicas. A especificação, normalização e normatização do SREI/ONR é feita pelo próprio Poder Judiciário, por intermédio do agente regulador – Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça (parágrafo 4º do artigo 76 da Lei 13.465/2017). Não é razoável supor que o Judiciário brasileiro possa permitir a exposição ou violação dos dados pessoais que se acham sob a guarda e conservação das serventias extrajudiciais que o próprio Poder Judiciário fiscaliza e regulamenta. A ministra Maria Thereza de Assis Moura, Corregedora Nacional de Justiça, demonstrou estar muito atenta e disposta a enfrentar o desafio de estabelecer diretrizes e regras gerais uniformes, harmônicas, para a proteção de dados de caráter pessoal no exercício das atividades notariais e registrais. Durante o 4º Fórum Nacional das Corregedorias (FONACOR), realizado em outubro passado, a senhora ministra declarou que o “novo marco legal ensejará, por parte da Corregedoria Nacional, cuidadosa regulamentação e a fixação de princípios e diretrizes de caráter uniforme que servirão de base para o exercício das atividades notariais e registrais”[5]. Na mesma ocasião, destacou a “importância da estruturação do ONR e a implementação do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (SREI) em âmbito nacional”, ressaltando que as diretrizes estratégicas que foram propostas para 2021 “traduzem a preocupação da Corregedoria Nacional diante dessas duas questões de tamanha relevância, para o que contaremos, uma vez mais, com o inestimável apoio das Corregedorias locais”[6]. Por fim, a ação judicial aludida na pergunta foi proposta por entidade que não tem qualquer vínculo com os cartórios imobiliários, nem se relaciona diretamente com matéria pertinente ao Registro de Imóveis eletrônico, padecendo, tal iniciativa, de vício insanável de impertinência temática. Além disso, não se deve esquecer que a ação foi proposta em janeiro de 2018 e não foi concedida qualquer medida liminar, o que patenteia a inexistência de risco e de perigo. A Lei 13.465/2017 vem produzindo seus efeitos e os frutos da regularização fundiária já se mostram à sociedade brasileira. Não devemos jamais esquecer que o sistema SREI/ONR foi concebido e regulamentado pelo próprio Poder Judiciário brasileiro, por meio de atos normativos sucessivos cuja culminância é o Provimento 89/2019 do Conselho Nacional de Justiça[7] e o Provimento 109/2020[8], que disciplina a atuação da Corregedoria Nacional de Justiça como Agente Regulador do ONR – Operador Nacional do Registro Imobiliário Eletrônico. O Poder Judiciário abraça um órgão da fé pública que integra a galáxia judiciária (inciso III, parágrafo 4º, do artigo 103-B da EC 45/2004) dando-lhe estabilidade, regramento e garantia de compliance com as normas de direito público que regulam o funcionamento das serventias extrajudiciais brasileiras. Fonte: Consultor Jurídico