O presidente Jair Bolsonaro editou a Medida Provisória 992 no último dia 16, permitindo que sobre um mesmo imóvel haja a constituição compartilhada de duas garantias. A finalidade da MP 992 é, segundo o Banco Central, a de ampliar o acesso ao crédito de até R$ 60 bilhões, instituindo a possibilidade de que um imóvel já financiado possa ser usado como garantia em novo empréstimo bancário. Com efeito, o financiamento para fins habitacionais foi, como política pública, instituído pela Lei 4.380/64, mediante o Sistema Financeiro da Habitação (SFH), com recursos oriundos do FGTS e da poupança voltado sobretudo à população de baixa renda. A partir da década de 80, constatou-se o exaurimento desse modelo, eis que o SFH não foi capaz de realizar o seu principal objetivo de promover a habitação para a classe mais pobre e houve uma herança negativa herdada pelo governo federal decorrente do rombo bilionário do fundo. Alterando completamente o paradigma da política habitacional, com a ênfase nos valores liberais da livre iniciativa e do livre mercado, foi instituído o Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), através da Lei 9.514/97, no governo Fernando Henrique Cardoso, o qual se apoiou no financiamento de investidores privados (especialmente bancos, financeiras, empresas de securitização, fundos de pensão e incorporadoras), na criação da alienação fiduciária de imóvel e na participação de instituições financeiras e de qualquer outra empresa nas operações de financiamento imobiliário. No financiamento imobiliário, o devedor obtém do banco o crédito para adquirir o imóvel perante o incorporador, e, ao mesmo tempo, o imóvel garante a dívida perante o banco, em contratos em rede com a participação do comprador/devedor, da incorporadora/vendedora e do banco/credor. A alienação fiduciária consiste na transmissão da propriedade do bem imóvel pelo devedor, para fins de garantia, em favor do credor. Caso venha a efetuar o pagamento integral da dívida, o devedor recebe do credor o termo de quitação, o qual, levado a registro no cartório de imóveis, conduz à extinção da alienação fiduciária em garantia e à consequente retomada da propriedade plena do imóvel. O aspecto meritório da alienação fiduciária em garantia é que, em havendo inadimplemento do devedor, a Lei 9.514/97 assegura ao credor uma rápida retomada do imóvel (média de 90 dias) para levá-lo a leilão extrajudicial. Até então, somente se admitia a constituição de uma única alienação fiduciária sobre o imóvel. Pela Medida Provisória 992, como o imóvel já financiado com alienação fiduciária em garantia pode ser utilizado como garantia em um novo empréstimo bancário, a nova operação de crédito poderá ter como referência os valores já pagos do financiamento imobiliário original. Exemplo: de um financiamento de R$ 100 mil dos quais já tenha pago R$ 40 mil, o devedor poderá hipoteticamente obter novo financiamento de R$ 40 mil. No exercício do poder regulamentar, o Conselho Monetário Nacional aprovou, em no último fia 21, a Resolução 4837, que dispõe sobre as condições e os critérios para contratação de financiamento imobiliário pelas instituições financeiras. Em apertada síntese: 1) poderão ser beneficiadas as pessoas físicas e jurídicas que tenham operações de crédito garantidas por alienação fiduciária de bem imóvel com instituições financeiras; 2) o novo financiamento deverá ser celebrado com o mesmo banco da operação de crédito original; 3) a pessoa física somente poderá contratar nova operação de crédito em benefício próprio ou de sua entidade familiar; 4) o valor total do novo financiamento deve ser menor ou igual ao saldo devedor do financiamento original, de modo que o valor nominal de todas as obrigações garantidas deve observar o limite aplicável à operação de crédito original; 5) a nova operação de crédito não poderá ter juros maiores que o financiamento original; 6) o prazo dos novos contratos também não poderá ser superior ao tempo da operação original; e 7) as despesas acessórias com registro do contrato perante o cartório de imóveis, imposto de transmissão de bem imóvel (ITBI), imposto sobre operação de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos mobiliários (IOF), podem compor a nova operação de crédito. O novo contrato deverá conter as seguintes informações: o valor principal da nova operação de crédito; taxa de juros e encargos; prazo e condições de reposição do empréstimo; prazo de carência; enquanto estiver adimplente, o devedor poderá utilizar livremente o imóvel; previsão de que o inadimplemento e a ausência de purgação da mora, em relação a quaisquer das operações de crédito, configuram vencimento antecipado de toda a dívida prevista nas operações de crédito; previsão de leilão extrajudicial e que, após o leilão extrajudicial, poderá o credor exigir o saldo devedor remanescente, salvo quando a operação de financiamento contratado por pessoa física. O devedor não está obrigado a liquidar antecipadamente a nova operação de crédito, caso opte pela liquidação antecipada da operação original ou vice-versa. Uma alteração relevante é que, quando o produto derivado da proposta do leilão não for suficiente para quitar a dívida, não se aplica a regra do artigo 27, §5º, da Lei 9.514/97, que prevê a quitação automática, exceto quando a nova operação de crédito tiver por finalidade o financiamento imobiliário por pessoa física. Ressalvada essa exceção, o credor poderá exigir o saldo devedor remanescente, caso o crédito não seja integralmente satisfeito por força do leilão extrajudicial, o que se afasta do regime da Lei 9.514/97, em seu artigo 27, §5º. As novas operações de crédito validamente celebradas, quando levadas a registro perante o cartório de registro de imóveis competente, são eficazes em relação aos atos jurídicos precedentes (registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias; a averbação de constrição judicial, do ajuizamento de ação de execução ou de cumprimento de sentença; averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos reais registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus quando previstos em lei; averbação mediante decisão judicial da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência), nas hipóteses em que estes não tenham sido registrados ou averbados na matrícula do imóvel perante o Cartório de Registro de Imóveis competente, a teor do artigo 54 da Lei 13.097/2015. Em tempos de juros baixos, as inovações inseridas pela Medida Provisória 992 são importantes para aumentar o acesso ao crédito, dando mais elasticidade da garantia imobiliária para novas operações de crédito, minimizando a cláusula de indivisibilidade que é comum nos contratos de financiamento, de sorte que a sociedade brasileira espera a aprovação pelo Parlamento.
* Gleydson K. L. Oliveira é advogado, professor da graduação e do mestrado da UFRN, doutor e mestre em Direito pela PUC-SP.
Fonte: Consultor Jurídico (ConJur)