Mesmo com o rigor dos agentes públicos no acompanhamento de todo o processo de adoção, infelizmente, a devolução de menores tem sido enfrentada com cada vez mais frequência pelo Poder Judiciário, ensejando o pleito de indenização por danos patrimoniais e morais, surgindo a discussão quanto ao momento em que surge o dever de indenizar Como se sabe, há um longo caminho a se trilhar quando um casal pretende adotar uma criança. O art. 46 do ECA prevê a necessidade prévia de um estágio de convivência com a criança ou adolescente. Há um acompanhamento multidisciplinar, por psicólogos, assistentes sociais e pelo Ministério Público, de modo a garantir que não haja arrependimento ou incompatibilidade entre os menores e os adotantes. Não por acaso, uma vez constituído o vínculo de adoção, ele é, por força do art. 39, §1º, do ECA, irrevogável. Dessa maneira, a sentença constitutiva de adoção poderia apenas ser anulada através da via estreita e excepcional da ação rescisória, sujeita ao prazo decadencial de dois anos, conforme entendimento consolidado do Superior Tribunal de Justiça1. Contudo, mesmo com o rigor dos agentes públicos no acompanhamento de todo o processo de adoção, infelizmente, a devolução de menores tem sido enfrentada com cada vez mais frequência pelo Poder Judiciário, ensejando o pleito de indenização por danos patrimoniais e morais, surgindo a discussão quanto ao momento em que surge o dever de indenizar. Pois bem, para que seja possível extrair quando emerge, em regra, o dever de indenizar, no caso específico da devolução do menor, é preciso analisar o procedimento que engloba a adoção, tendo como base a legislação vigente, e os requisitos da responsabilidade civil. Após o pedido de habilitação dos futuros pais no Cadastro Nacional de Adoção, do estudo psicossocial e do parecer ministerial, verificando ser viável a adoção por parte dos requerentes, será deferido judicialmente o pedido, com a consequente inscrição dos solicitantes na fila de adoção. Realizados os primeiros procedimentos, será escolhida a criança que mais se harmonize ao perfil predeterminado pelos adotantes, ocasião em que será exibido o histórico do infante aos interessados, sendo que após concordância expressa, o menor será apresentado aos requerentes. Depois da apresentação, havendo consentimento mútuo com a continuidade das visitas, começará o estágio de convivência. Obtendo êxito na aproximação, será dado efetivamente início ao pedido de adoção, com deferimento da guarda provisória até o fim do processo, que ocorre com a sentença de adoção transitada em julgado. É inequívoco que, nos termos da lei, a adoção somente terá seu vínculo de filiação constituído a partir do momento da prolação da sentença judicial, de forma definitiva a partir do trânsito em julgado da sentença, surgindo, assim, todas as obrigações decorrentes da filiação, bem como suas consequências legais e sociais2. Até este momento não há elo legal vinculante, mas sim um procedimento de pré-análise da viabilidade da convivência entre os futuros pais e o menor, fundamental para o êxito do procedimento de adoção, vez que o pedido pode ser indeferido por inúmeros motivos (incompatibilidade entre adotado e adotantes, recomendação do comitê psicossocial etc.). Feitas estas considerações, é possível vislumbrar que o estágio de convivência é o período chave que precede a concretização da adoção, pois neste momento é possível constatar a afinidade entre os adotantes e o infante, com a aproximação gradativa entre eles, a fim de construir e concretizar o vínculo afetivo, não existindo vinculação obrigacional e muito menos vedação legal à devolução do menor e a desistência do procedimento neste período. Ilustrando nosso posicionamento no sentido de inexistir dever de indenizar até o trânsito em julgado da sentença de adoção, é necessário trazer à tona um precedente ocorrido em Minas Gerais, onde por maioria de votos prevaleceu o afastamento do dever de indenizar a um menor devolvido antes do término do procedimento de adoção. Foi reconhecido que a “própria lei prevê a possibilidade de desistência, no decorrer do processo de adoção, ao criar a figura do estágio de convivência”: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – INDENIZAÇÃO – DANO MATERIAL E MORAL – ADOÇÃO – DESISTÊNCIA PELOS PAIS ADOTIVOS – PRESTAÇÃO DE OBRIGAÇÃO ALIMENTAR – INEXISTÊNCIA – DANO MORAL NÃO CONFIGURADO – RECURSO NÃO PROVIDO. – Inexiste vedação legal para que os futuros pais desistam da adoção quando estiverem com a guarda da criança. – O ato de adoção somente se realiza e produz efeitos a partir da sentença judicial, conforme previsão dos arts. 47 e 199-A, do Estatuto da Criança e do Adolescente. Antes da sentença, não há lei que imponha obrigação alimentar aos apelados, que não concluíram o processo de adoção da criança. – A própria lei prevê a possibilidade de desistência, no decorrer do processo de adoção, ao criar a figura do estágio de convivência. – Inexistindo prejuízo à integridade psicológica do indivíduo, que interfira intensamente no seu comportamento psicológico causando aflição e desequilíbrio em seu bem estar, indefere-se o pedido de indenização por danos morais. […] (TJ-MG – AC: 10481120002896002 MG, relator: Hilda Teixeira da Costa, Data de Julgamento: 12.08.14, Câmaras Cíveis /2ª Câmara Cível, Data de Publicação: 25.08.14) Diante do exposto e com base na legislação vigente, entendemos que até a sentença constitutiva de adoção, é possível desistir do procedimento, com a devolução do menor ao abrigo, sem ensejar o reconhecimento do dever de indenizar, porquanto inexistente ato ilícito – pressuposto da responsabilidade civil. Neste tocante, é cediço que para que haja o dever de indenizar, mostra-se necessário o preenchimento de todos os requisitos da responsabilidade civil, sendo eles: (a) ato ilícito; (b) nexo causal; e (c) dano. Somente a partir da obtenção do status de pais e de filhos – que ocorre após o trânsito em julgado da sentença prolatada nos autos de adoção – é que se poderá, no caso específico da devolução, questionar, com base nos requisitos da responsabilidade civil, a existência de ato ilícito, resultante da violação da ordem jurídica com ofensa ao direito alheio e lesão ao respectivo titular (art. 9273 do Código Civil), capaz de ensejar o reconhecimento do dano moral, uma vez que a ilicitude do ato se consubstanciaria no reconhecimento do abandono e desamparo material e moral do menor, filho constituído por laços de parentesco civil permanente, em especial o dever de guarda, assistência e educação, sendo todos deveres decorrentes da legislação pátria, devendo o valor da indenização levar em conta a extensão do dano, conforme preceitua o art. 944 do Código Civil. É relevante destacar que defendemos ser possível não apenas a indenização por danos morais, como também materiais – os pais adotantes, em vista da impossibilidade da desconstituição do vínculo criado, continuarão a ter todas as obrigações patrimoniais que decorrem da filiação biológica, o que enseja, igualmente, o pleito de pagamento de pensão mensal para sustento do menor sem que haja qualquer redução em seu padrão de vida. Até porque, a sentença de adoção atrai todos os efeitos da filiação natural, inclusive os patrimoniais, sendo uma das obrigações financeiras reconhecida pela legislação é a prestação de alimentos ao menor (conforme artigos 1.694 e seguintes do Código Civil). Em igual sentido, recentemente foi publicada uma notícia pelo site Migalhas tratando de uma condenação por dano moral, decorrente da “devolução” de uma menor após 9 (nove) anos da adoção. Na situação concreta, por supostos problemas de convivência, a menor foi reintegrada ao abrigo, sendo que os adotantes sequer buscaram contato com a adolescente após o seu retorno ao acolhimento, mesmo com a mesma expressando o desejo de reatar o vínculo afetivo4. Na sentença, os pais adotivos foram condenados ao pagamento de uma indenização à jovem, no montante de R$ 50 mil, a título de dano moral, por conta do inegável abalo sofrido com a devolução. Em outro caso envolvendo a devolução de um menor após a concretização da adoção, o TJMG5 reconheceu o dever de indenizar, a título de danos materiais e moral. O adolescente foi devolvido por conta de supostos problemas de convivência, sendo que os “pais” sequer buscaram se reaproximar do filho, pelo contrário, em todos os momentos de visitação, que faziam de forma contrariada, desrespeitavam o menor, mesmo o jovem estando arrependido e buscando a reaproximação, o que corroborou com os abalos sofridos. Para além, o jovem foi privado da convivência com sua irmã biológica, que foi adotada pelo casal e continua vivendo no seio familiar. Assim, levando em conta as peculiaridades do caso concreto, foi mantida a condenação a título de dano moral que havia sido arbitrada em primeiro grau, no montante de R$ 15 mil reais, e, além disso, manteve a condenação ao pagamento de alimentos. Não se pode perder de vista a necessidade de análise casuística para fins de arbitramento do valor da indenização, uma vez que diversos fatores podem influenciar no quantum indenizatório, em especial a condição econômica das partes e os motivos que levaram ao rompimento do vínculo (que pode agravar o grau de culpabilidade dos adotantes). De toda sorte, correndo o processo de adoção sem qualquer mácula procedimental, mediante a participação de equipe multidisciplinar e atuação do Ministério Público, e também sem que haja oposição dos pais adotantes previamente à sentença (especialmente no período de convivência), caso decidam romper o vínculo unilateralmente após o trânsito em julgado da decisão constitutiva, emana o dever de pagamento de indenização por danos extrapatrimoniais ao menor, sem prejuízo da continuidade das obrigações materiais assumidas. Fonte: Migalhas