Em decisão que certamente será um marco para a proteção de dados no Brasil, o STF suspendeu os efeitos da Medida Provisória 954/20, acolhendo uma angústia generalizada em relação a iniciativas de monitoramento no período da quarentena e a ameaça de um Estado vigilante. A decisão reconheceu que a Constituição Federal de 1988 sedia elementos basilares da proteção de dados e pronunciou explicitamente o princípio de autodeterminação informacional. No contexto tecnológico atual, os direitos da personalidade previstos na CF-88 (direito à intimidade, honra, imagem, dignidade e vida privada) impõem que controladores e operadores de dados pessoais sejam transparentes quanto à finalidade da coleta, bem como assegurem o seu tratamento de modo proporcional (necessário e adequado) ao fim declarado. Os ministros do STF enalteceram a higidez do IBGE e seu caráter de instituição pública de pesquisa e destacaram sua importância na formulação de políticas públicas. Porém, não esconderam sua desconfiança em relação aos objetivos da coleta do nome e número de telefone e endereço de milhões de brasileiros (artigo 2º da MP 954/20). Essa desconfiança de fundo acabou por suplantar o uso estatístico de dados pessoais por um órgão público de pesquisa estatística, o que, em geral, é admitido pelas legislações de proteção de dados. Assim, o tema merece uma análise mais aprofundada, notadamente quando olhamos para o precedente internacional dado pelo o caso do Censo, julgado em 1983 pelo Tribunal Constitucional Alemão [1], citado largamente por todas as ações diretas de inconstitucionalidade impetradas. De fato, aquele caso é considerado como o grande marco fundacional, internacional, da proteção de dados, por seu pioneirismo em enunciar e delimitar com precisão o direito fundamental à autodeterminação informacional, e por traçar um prognóstico acertado da relevância, na sociedade de informação, do controle individual sobre o tratamento de dados pessoais como aspecto fundamental do florescimento da personalidade individual e construção de uma esfera pública democrática. Até aqui a citação é adequada. Porém, segundo aquele julgado, o problema recaia apenas sobre um dispositivo, o artigo 9º, incisos I, II e III da lei combatida, que previa o compartilhamento dos dados coletados pelo órgão estatístico com outros órgãos da administração pública para finalidades não estatísticas, de gestão administrativa, que não foram especificadas previamente. Não se tratava de proibição ou inconstitucionalidade do próprio censo ou da coleta de dados de todos os cidadãos, valendo notar que aquela lei tornava obrigatório o fornecimento não só de nome, telefone e endereço, mas também de data de nascimento, grau de escolaridade, religião, fonte de sustento doméstico, ocupação profissional, endereço da ocupação, condições de moradia, salários e rendimentos etc. Todo o restante da lei, referente ao uso estatístico dos dados, foi considerado constitucional, dentro de uma análise de proporcionalidade. Naquela oportunidade, antecipou-se uma tendência das legislações contemporâneas de proteção de dados (inclusive a brasileira), ao considerar constitucional o uso estatístico por órgãos de pesquisa como uma base legal de tratamento, independente de consentimento e de detalhamento a priori da finalidade. O trecho abaixo da decisão é significativo: "Faz parte da própria natureza das estatísticas que, uma vez que os dados tenham sido processados estatisticamente, devem ser utilizados para uma grande variedade de finalidades que não podem ser determinadas a priori; consequentemente, há também a necessidade de armazenamento de dados. A exigência de uma definição concreta da finalidade e a proibição estrita da coleta de dados pessoais sobre a conservação só se pode aplicar à coleta de dados para fins não estatísticos, mas não a um censo, que se destina a fornecer uma base de dados segura para estudos estatísticos futuros, bem como para o processo de planejamento político, determinando de forma fiável o número e a estrutura social da população". Portanto, o vício de constitucionalidade estava apenas na transferência do dado pessoal do órgão estatístico para órgãos de execução administrativa e seu emprego ou cruzamento para o embasamento de decisões de gestão, que poderiam levar em consideração perfis pessoais e aspectos da personalidade, sem o conhecimento e possibilidade de controle pelo sujeito do dado [2]. Esses fundamentos presentes na decisão alemã merecem atenção e cotejo com o artigo 2º MP 954/20, que obriga as empresas de telefonia fixa e móvel a disponibilizar ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a relação de nomes, números de telefone e endereços dos seus consumidores. No marco jurisprudencial alemão, a lei do censo coletava dados de todos os cidadãos, incluindo dados sensíveis, sendo, portanto, muito mais "invasiva" do que a MP 954/20. É claro que, hoje, um número de celular tem potencial de geração de informações muito superior do que na década de 1980, tal como a navegação em sites e localização geográfica. Porém, ao menos segundo o texto da MP 954/20, os nomes, endereços e telefones não seriam o objeto propriamente de tratamento, mas apenas "com o objetivo de realizar entrevistas em caráter presencial no âmbito de pesquisas domiciliares" (parágrafo 1º). Acerca do uso estatístico como base legal independente para o tratamento, que, aliás, é reconhecido também pela Lei Geral de Proteção de Dados — LGPD (artigo 5º, inciso XVIII, e artigo 7º, inciso IV), não há dúvidas de que o IBGE cumpre o requisito, pelo menos em seu desenho institucional. Constitui objetivo básico do IBGE assegurar informações e estudos de natureza estatística necessários ao conhecimento da realidade física, econômica e social do país (Lei nº 5878/1973, artigo 2º). E a própria legislação de regência impede o uso dos dados pelo IBGE para outros usos, que não os estatísticos (artigo 6º). Note-se que o IBGE, por determinação do artigo 49 da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73), recebe, periodicamente, conjunto extenso dos dados pessoais constantes guardados pelos cartórios de Registro Civil de Pessoas Naturais. Essa lei foi recepcionada pela CF-88 e não teve sua constitucionalidade questionada. E se sabe que cartórios de registros de pessoas naturais lidam, em essência, com dados pessoais, e em grande parte, íntimos, como a natureza da filiação paterna, adoção e por vezes, sensíveis, como a mudança de nome pela alteração de sexo. Para o desempenho de suas atribuições, o IBGE tem a prerrogativa de firmar acordos, convênios e contratos com entidades públicas e privadas, preservados o sigilo e uso das informações (artigo 8º da Lei 5878/1973). Em função desse dispositivo, cabe até mesmo questionar se a MP 954/20 não seria redundante, uma vez que o órgão estatístico poderia firmar acordo diretamente com as empresas de telecomunicação para obtenção dos dados (nome, telefone e endereço) de cidadãos selecionados, assim como já o faz com outras entidades, para proceder a suas entrevistas usuais por amostragem. Se não for um equívoco de avaliação jurídica dos responsáveis pelo instrumento normativo, talvez esse aspecto permita compreender a desconfiança, conforme mencionado em algumas das ADIs e, em particular, pelo ministro Roberto Barroso, em relação a quais seriam os "reais" motivos de sua edição, em contexto de disseminação de desinformação nas redes sociais. A desconfiança é reforçada pela recente publicação do Decreto 10.046/19, que cria o Cadastro Base do Cidadão, prevendo o livre compartilhamento dos dados pelos órgãos da Administração, independentemente de convênio ou qualquer termo que explicite sua finalidade, ou ainda, pelo Decreto 9.929/19 que determina a transferência dos dados do registro civil de pessoas naturais a um "comitê gestor" formado por sete ministérios, além do INSS e do próprio IBGE, que podem compartilhá-los entre si, independentemente de requisição. Tais decretos, esses sim, atingem o âmago da decisão do censo pelo tribunal alemão ao violarem o princípio de divisão de poderes informacional [3]. Esse sentimento de desconfiança tem uma tradução jurídica relevante. A MP 954/20, ao mencionar e se restringir ao período da Covid-19, não deixa claro se os estudos teriam por objeto a epidemia, ou se a epidemia seria apenas o inconveniente a exigir o empenho remoto dos pesquisadores do IBGE para seus estudos e levantamentos correntes. Se for o primeiro caso, não está claro o objetivo do estudo, daí a insegurança em relação a um monitoramento não transparente de cidadãos. Se for o segundo, como postulado pela Advocacia-Geral da União, não está clara a razão da abrangência, com a coleta de dados de todos os consumidores das empresas de telefonia para procedimentos que, usualmente, são amostrais, indicando, assim, uma desproporcionalidade, como bem apontou o ministro Luiz Fux. Embora a decisão tenha reconhecido o assento constitucional do princípio da autonomia informacional, as omissões da MP 954/20 apontadas pelo voto relator (garantia de segurança contra vazamento, responsabilidade etc.) poderiam ser objeto de modulação, com a regulamentação do procedimento e organização transparente do tratamento. A suspensão em absoluto da MP 954/20 tem por base, em última análise, aquela desconfiança quanto a um possível uso dos dados fora do IBGE. Por não deixar isso claro, a decisão acabou obscurecendo o fato de que o uso estatístico, mormente por órgão oficial de pesquisa, é legítimo, sendo desnecessária a especificação em pormenor da finalidade, uma vez que a relevância do dado pode se revelar ex post para a adoção de políticas públicas. É certo que a coleta de dados de todos os cidadãos para realização remota de entrevistas amostrais não parece sobreviver a um juízo de necessidade e proporcionalidade, o que viola a autodeterminação informacional. Mas, se a desconfiança está na circulação desses dados em outros órgãos da administração, para fins desconhecidos, então o juízo de inconstitucionalidade, com muito mais razão, deveria recair sobre os Decretos 10.046/19 e 9.929/19, que autorizam a livre circulação de dados pessoais por órgãos públicos. Fonte: Consultor Jurídico