Modelos estrangeiros de proteção de dados podem oferecer apoio essencial para o aprimoramento do direito nacional
Com frequência, compara-se a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei n. 13.709/2018 – LGPD) com o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados da União Europeia (Regulamento n. 2016/679 – na sigla em inglês, GDPR). Essa comparação não é por acaso. Além do modelo europeu ter servido de inspiração no processo legislativo da LGPD, a semelhança dos textos e das estruturas topológicas de seus artigos incitam a curiosidade de saber o que é diferente, quando tudo se parece igual.
A despeito de eventuais semelhanças, a análise comparatística não é tarefa fácil. Se limitada ao nível textual, ou seja, cruzando os textos dos artigos, o resultado pode esconder diferenças importantes – e por vezes determinantes – na interpretação dos regimes jurídicos. Para que a comparação gere conhecimentos úteis, são necessários alguns cuidados metodológicos.
Sem pretensão de esgotar a matéria, esse curto ensaio discute alguns pressupostos para uma análise comparativa crítica entre a LGPD e o GDPR.
Comparação e seus usuários
O passo inicial da comparação é saber dos seus motivos. Ou melhor, qual o interesse em conhecer um regime jurídico estrangeiro e compará-lo com o nosso? Há uma resposta geral e outras específicas para essa pergunta. Em geral, qualquer pesquisa se justifica pela criação de conhecimentos novos e pode ser motivada pela curiosidade daquele que compara,
[i] inclusive quando não houver utilidade prática direta. Entretanto, a comparação também pode gerar utilidades para alguns usuários específicos.
A título ilustrativo, podemos destacar o Poder Legislativo, o Poder Judiciário e o setor privado como usuários dos estudos comparados.
Legisladores de diversos países lidam com problemas sociais semelhantes. Estudos de direito comparado dão ferramentas ao Poder Legislativo para conhecer experiências estrangeiras. Dessa forma, modelos e soluções adotadas em outros sistemas jurídicos ajudam o aprimoramento do direito nacional.
Durante a tramitação do projeto de lei da LGPD, por exemplo, os modelos de proteção de dados vigentes na União Europeia, nos Estados Unidos da América e na Argentina são mencionados no parecer da Comissão Especial.
Quando o Poder Judiciário é chamado para resolver questões relacionadas à proteção de dados ou à atuação da ANPD, jurisprudência de tribunais e doutrina estrangeiros ajudam a compreender problemas específicos e as respectivas soluções encontradas.
Assim, estudos comparados oferecem aos julgadores um verdadeiro método de interpretação
[ii] – ao lado da interpretação semântica, histórica, sistemática e teleológica. Não se trata de simplesmente seguir o entendimento dos tribunais estrangeiros, mas de utilizar a experiência estrangeira para decidir melhor.
Por fim, o setor privado precisa adaptar seus procedimentos internos com as regras de proteção dados.
A depender da atividade, a empresa precisa cumprir regras vigentes em diferentes países, o que nem sempre é fácil. Por isso, a comparação de diferentes regimes jurídicos dá instrumento para facilitar a harmonização dos procedimentos internos.
Em um nível menos operativo, também interessa ao setor privado que os países reconheçam mutualmente o nível de proteção de dados como adequado, para facilitar transferências de dados (art. 34 da LGPD e art. 45 do GDPR).
Método de comparação
Como visto, o resultado da comparatística influencia o processo legislativo, decisões judiciais e a atividade empresarial. Por ser uma fonte importante de informação, é essencial tomar alguns cuidados para evitar comparações superficiais e, por isso, equivocadas entre regimes jurídicos.
Abaixo listamos alguns pressupostos metodológicos para uma comparação adequada entre a LGPD e o GDPR.
A procedimento começa com a escolha de um termo de comparação, ou seja, o ponto de referência pelo qual será possível comparar dois objetos. Pelo método funcional,
[iii] o termo de comparação é um problema social e os objetos comparados serão as normas jurídicas que lidam com esse problema, fomentando a sua solução. Haverá, portando, uma relação funcional entre as normas comparadas e o termo de comparação.
Por exemplo, podemos escolher como termo de comparação a proteção da pessoa natural contra o uso indevido de seus dados pessoais por terceiros. A partir dessa perspectiva, os objetos serão as normas que exercem a função de proteger as pessoas naturais, estabelecendo proibições, garantindo direitos etc.
Aqui surge o primeiro problema. De acordo com esse termo de comparação, não é possível comparar a LGPD com o GDPR sem considerar as demais normas que, em ambos os sistemas, exercem funções semelhantes.
No Brasil, a proteção de dados pessoais é garantida pela LGPD em conjunto com outras normas, como a Lei de Acesso à Informação, o Marco Civil da Internet etc. Na União Europeia, a proteção de dados decorre do GDPR, leis nacionais complementares
[iv] e outras diretivas e respectivas implementações. Isso significa que comparações limitadas à LGPD e ao GDPR serão incompletas.
O próximo passo do procedimento é a contextualização dos objetos de comparação dentro de uma perspectiva macrojurídica. Em outras palavras, as normas destacadas precisam ser compreendidas dentro do sistema jurídico ao qual pertencem.
A LGPD é uma lei nacional de caráter geral e precisa ser interpretada de acordo com a nossa dogmática constitucional. Enquanto isso, o GDPR tem sua lógica própria como regulamento geral da União Europeia, sujeitando-se aos quadros interpretativos europeus, em especial no que toca os direitos fundamentais.
Todos esses aspectos devem ser considerados, pois poderá influenciar o resultado da interpretação (e consequente comparação) das normas destacadas.
Após essas três etapas – termo de comparação, delimitação do objeto e contextualização macrojurídica – pode-se efetivamente realizar a comparação em sentido estrito. O resultado esperado dessa operação é identificar as diferenças e semelhanças entre os objetos em relação à função destacada. A depender do interesse do estudo, aspectos específicos serão analisados – como exigências ao consentimento, tratamento baseado no legítimo interesse etc.
Importante apontar que não é possível extrair a melhor solução dentre as normas comparadas. Na verdade, o próprio método limita a possibilidade de uma avaliação valorativa. Enquanto a comparação concentra-se em uma função, as normas jurídicas podem exercer diversas funções dentro do sistema jurídico.
[v]
As regras de proteção de dados, por exemplo, não protegem apenas as pessoas naturais, mas equalizam diversos interesses – liberdade de expressão, livre iniciativa, interesses públicos etc. Ao comparar a LGPD com o GDPR unicamente sob a perspectiva da proteção da pessoa natural, o resultado não será conclusivo para definir a melhor solução perante o conjunto de interesses que compõe cada uma de suas normas.
Essa dificuldade na avaliação crítica incentiva o uso conjunto de outros métodos, para aprofundar a compreensão das semelhanças e diferenças entre os sistemas jurídicos.
[vi] Isso incluiria considerações de fatores metajurídicos, tais como circunstâncias sociais, culturais e econômicas.
Para destacar apenas um, fatores sociais têm grande relevância para a proteção de dados. Como a ideia de privacidade e proteção de dados variam de acordo com o tempo e a sociedade,
[vii] a própria percepção do indivíduo de uma violação ao seu direito depende de variáveis culturais.
Dessa forma, compreende-se como uma mesma ideia (proteção de dados) ou uma mesma norma, seja diferentemente absorvida e interpretada de acordo com a sociedade.
Mesmo se olharmos para o GDPR, de aplicação direta em todos os estados-membros da União Europeia, é possível identificar a influência da cultura em cada país
[viii] nos resultados esperados das normas. Enquanto a comparação funcional não consegue analisar essas peculiaridades, outros métodos podem endereçar tais fatores metajurídicos.
Com esses apontamentos, buscamos ressaltar a importância do método de comparação para compreender as diferenças entre a LGPD e o GDPR. Como ensina Häberle,
[ix] a comparatística é fundamental para o enriquecimento dos sistemas jurídicos, a partir de um processo ativo de recepção das experiências estrangeiras e consciente do seu próprio contexto.
Não há dúvida que modelos estrangeiros de proteção de dados oferecem apoio essencial para o aprimoramento do direito nacional. É preciso, porém, cuidado e visão crítica.
Fonte: Jota