O Supremo Tribunal Federal pautou para os próximos dias o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.880, proposta pelo Conselho Federal da OAB em 2007, questionando a constitucionalidade de dispositivos da Lei 11.419/2006, primeira lei nacional que se propôs a regrar a informatização dos processos judiciais. Os 13 anos passados fizeram com que parte dos problemas arguidos na referida ação fossem superados, como mera decorrência do avanço tecnológico. Em 2006, ano de promulgação da lei que é objeto dessa ADI, era sem dúvida questionável, especialmente sob o prisma das garantias de acesso à Justiça, da inafastabilidade do controle jurisdicional, ou do devido processo legal, que os jurisdicionados somente pudessem se manifestar em juízo por meio de petições enviadas eletronicamente. Àquela época, algo como a metade dos municípios do país não tinha acesso à internet, ou o acesso era muitíssimo deficiente, ou instável. Embora, como precoces usuários de computadores em nossas vidas privada e profissional, fôssemos desde três décadas atrás profundos entusiastas do uso das novas tecnologias nos processos judiciais, sempre defendemos que tal migração devesse ser feita com prudência e parcimônia, dada a multiplicidade de aspectos que precisariam ser bem dimensionados nessa necessária jornada. E parecia evidente que, em 2006, abolir por completo o peticionamento em papel equivaleria praticamente a negar jurisdição a parcelas expressivas da população, ou embaraçar custosamente o exercício do direito de demandar e de se defender em juízo, dificultando, igualmente, o trabalho dos advogados. Hoje, graças à quase onipresença da internet e a exponencial melhoria da qualidade de suas conexões, a informatização processual tornou-se não apenas possível, como pode ser considerada um grande sucesso. Mesmo assim, julgamos que a possibilidade — e a existência de canais para isso — de peticionamento em papel não poderia ser completamente abolida, mas tendo em vista, agora, não a precariedade das redes de década e meia atrás, mas o risco sempre presente de surgirem situações de crise. O Estado não pode negar a oferta de justiça se sofrermos panes nos sistemas elétrico ou de comunicação, ainda que em pequenas parcelas do território. Se, por exemplo, uma calamidade ocorrer, a derrubar o fornecimento de energia de alguns municípios, por alguns dias ou talvez semanas, não é razoável que seus moradores sejam privados do acesso à justiça durante esse interregno. Mas há pontos suscitados na ADI 3.880 que são até hoje relevantes, pela tese jurídico-política ali discutida. Uma das regras mais criticáveis da Lei 11.419/2006 era aquela que estabelecia o credenciamento de advogados junto aos órgãos do Poder Judiciário, como requisito prévio para o envio de petições, ou o recebimento de intimações. Note-se que a lei menciona a palavra “credenciamento”, cujo sentido semântico é mais específico do que o de uma mera atribuição de login e senha, ou outro meio simples de identificação e acesso do advogado a um dado sistema informático. A palavra credenciamento supõe, mais do que uma mera verificação de identidade de quem se apresenta ao tribunal, alguma forma de controle, autorização, habilitação, capacitação, ou sujeição do postulante a regras administrativamente fixadas pelo órgão credenciante. Não cabe ao Poder Judiciário, no exercício de funções meramente administrativas, definir quem é ou quem não é advogado! Tal tarefa é função institucional da OAB. Advogados são todos os seus inscritos, e o são enquanto permanecerem inscritos e não sofrerem penas disciplinares de suspensão ou exclusão, também impostas exclusivamente pela Ordem. A inscrição nos quadros da OAB é requisito bastante e suficiente para atribuição da capacidade postulatória, e não cabe — jamais coube! — ao Poder Judiciário, em funções de cunho meramente administrativo, negar capacidade postulatória ao advogado regularmente inscrito que assim se apresente em juízo. Portanto, é inadmissível, a pretexto de usar sistemas informáticos em juízo, que o Poder Judiciário controle, ou regule de qualquer modo, quem pode ou quem não pode ser “credenciado”. Todo aquele que se encontrar regularmente inscrito como advogado nos quadros da Ordem tem capacidade postulatória para atuar em juízo, sem outras exigências mais, tanto para fazê-lo mediante petições em papel como pelo envio de arquivos de computador. Não pode, evidentemente, a lei ordinária dar ao Poder Judiciário uma função administrativa que a Constituição não lhe atribuiu, nem tampouco colocar a advocacia em posição de subordinação, como se fossem os advogados funcionários dos tribunais. Não pode haver subordinação entre as carreiras jurídicas que atuam no processo, para que cada uma possa bem desempenhar, com necessária independência, as suas funções: a dos advogados, postular; a dos juízes, julgar a causa. Como um comentário adicional sobre a Lei 11.419/2006, podemos dizer que se tratou de um diploma legislativo que desde o seu nascedouro nos inspirou sentimentos ambíguos. Foi sem dúvida relevante, como primeira lei a tratar exclusivamente da informatização processual que tanto aguardávamos desde antes da virada deste milênio, e trouxe alguns lustrosos acertos, como o uso do Diário Eletrônico para realizar intimações, e por tais façanhas merece ser lembrada pela História; mas foi infeliz em algumas das escolhas feitas, ou, de modo geral, na redação legislativa por ela empregada. Tome-se como exemplo as suas disposições sobre o uso de assinaturas. O emprego de assinaturas digitais foi questão que insistentemente defendemos, e continuamos a defender. O projeto original que resultou na Lei 11.419/2006, e que chegou a ser aprovado em primeira votação na Câmara dos Deputados, nada falava a respeito do uso de assinaturas digitais, um conceito ainda muito pouco compreendido ou assimilado pela comunidade jurídica naqueles tempos (o que, em menor medida, ainda é uma realidade…). Afinal, se atos em papel eram assinados, prática secular que permite atribuir autoria às manifestações escritas de vontade, nada mais natural que os atos manifestados por arquivos digitais também o fossem. A assinatura digital, tal como a assinatura manuscrita, permite conferir a autoria de uma manifestação escrita e, evidentemente, isto impede que esta seja substituída por outra, falsa, que não foi a intenção emanada pelo sujeito que praticou o ato. Sem assinaturas digitais, o documento digital pode ser comparado a um mero impresso apócrifo, ou a um texto escrito à lápis. Não se conhece outro meio de assinar documentos digitais que não seja pelo uso da criptografia assimétrica. Não, ao menos, se esperamos assinaturas que preencham as mesmas funcionalidades das assinaturas antes utilizadas, com tinta grafada sobre o papel. Fomos muito criticados, à época, por insistentemente defender essa posição que, segundo diziam alguns, iria “engessar a tecnologia”. Mais de vinte anos depois do início dessas discussões sobre a forma de assinar, inauguradas com a apresentação, pela Comissão de Informática da OAB-SP, do anteprojeto que originou o PLC 1.589/1999, não surgiu nenhuma “tecnologia” capaz de desbancar o uso de criptografia como forma de assinar digitalmente. Mesmo porque assinaturas digitais por criptografia são um conceito, não uma “tecnologia” específica ou passageira qualquer, daí advindo o equívoco original das críticas então feitas à sua explícita referência pela legislação. Como resultado dessas querelas, a Lei 11.419/2006 não teve a clareza necessária ao definir o uso de assinaturas, ou ao conceituá-las, além de criar uma burocracia desnecessária em torno de sua utilização, o que não era a intenção das nossas propostas. Ao fim e ao cabo, é por criptografia assimétrica que todos estamos, atualmente, assinando os nossos atos processuais! Só nos resta crer que o tempo passado possa, como soe acontecer, aplainar o calor exacerbado dos debates e permitir a correção dessas imperfeições legislativas! Fonte: ConJur