Falar em domicílio em dias de internet parece um pouco até fora de moda. O banco lhe notifica por e-mail, a Receita Federal envia notificações fiscais para sua caixa de correio onde quer que você esteja, o banco permite transações se você compartilhar sua localização, ou evita transações se sua localização estiver incompatível com seus dados disponíveis na rede. Você pode morar num barco ou num equipamento de motorhome… enfim, para que serviria hoje o conceito de domicílio para aplicação da lei ou das garantias individuais? Em outras palavras, se o domicílio é indispensável para “enquadrar” em uma dimensão espaço-tempo todos os titulares e destinatários de direitos e deveres, sejam pessoas físicas ou jurídicas (a fim de garantir certeza e transparência nas relações jurídicas), o que aconteceria caso esta finalidade pudesse juridicamente ser cumprida através da execução de notificações realizadas mediante meio tecnológico? Por exemplo, como no caso das notificações via correio eletrônico (ou, como já foi definido “domicílio eletrônico”)? Recebida a comunicação em e-mail qualificada ou certificada, não seria cumprida a finalidade do instituto independentemente de onde se encontre o domicílio “tradicionalmente” considerado do destinatário? Qual necessidade de manter o conceito tradicional de domicílio, se a evolução e o desenvolvimento dos meios eletrônicos, permitem favorecem – já hoje – a simplificação das relações jurídicas e suas tutelas. Não a caso, já se fala de chip eletrônico subcutâneo (capaz de mostrar em tempo real a posição do destinatário de qualquer documento) ou ainda a tecnologia blockchain (ou protocolo de confiança) ou, por fim, a mais geral conceptualização de inteligência artificial. Dentro deste contesto social que se apoia sempre mais no meio tecnológico, a conceptualização do domicílio (aqui a audaciosa provocação) não seria talvez superada? Pela doutrina tradicional, o domicílio, e sua tutela, é paradigma imprescindível do sistema dos direitos fundamentais constitucionalmente garantidos, enquanto direito estrutural e funcionalmente ligado aos direitos [e princípios fundamentais] da liberdade pessoal e da propriedade privada. A tutela do domicilio reflete, portanto, autônoma e imprescindível garantia constitucional, que não se limita à perspectiva jurídica da tutela substancial ou patrimonial do bem material a ser tutelado, mas se expande para proteger a esfera completa dos aspectos e dos interesses do indivíduo através dos quais pode se exprimir na sociedade. Em particular, o domicílio constitui de jure o fundamento jurídico do concreto exercício daqueles outros direitos conteúdos na própria liberdade e da dignidade do individuo. O direito de domicílio se concretiza, portanto, na funcionalização da liberdade pessoal do individuo na perspectiva de tutela-lo contra comportamentos e/ou interferências externas à sua esfera de ação. Assim, o direito ao domicílio tutela o espaço vital, até aqui compreendido como espaço físico que permite ao individuo o exercício da sua dignidade, pessoalidade e cidadania, além da relação com os outros indivíduos. A proteção ao domicílio sempre foi ampla, possibilitando apenas excepcionalmente sua limitação. As eventuais limitações ou exceções à tutela do direito de domicílio não seguem a regra da exceção isolada, mas há uma derrogação geral prevista pela lei que tutela outros interesses constitucionalmente protegidos, como os interesses fiscais, da saúde e da segurança publica etc.1 Em particular, é neste contesto de limitações ao domicílio por tutelar interesses públicos protegidos que o desenvolvimento do meio tecnológico encontra um âmbito de aplicação maior e em continua expansão. Daí a legitima e sobre citada quaestio. O Código Civil, ao seu artigo 70, define: “o domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela escabece a sua residência com animo definitivo”. Ou seja, compreende um espaço físico em princípio. Diferentemente da residência onde há intenção de ficar permanentemente (animus residendi), e a moradia é o local em que a pessoa se escabece, mas sem a intenção de permanecer. Mas e a nuvem, e o espaço destinado ao meu encontro no mundo cibernético, para fins de cumprimento da Lei, ainda seria domicílio? É o que tentamos refletir nesse artigo. O art. 76 do CC destaca a diferenciação entre domicílio voluntario e domicílio necessário, e dentro da tipologia do domicilio necessário, há a repartição entre domicílio originário e legal. Em particular, no primeiro caso, o domicílio voluntário se concretiza em um ato de livre vontade; diferentemente, o domicílio necessário legal encontra a sua fonte na lei, e regulamenta determinadas categorias de pessoas (incapaz, servidor publico, militar, marítimo, preso), enquanto o domicílio necessário originário é o adquirido pelo individuo ao nascer. O domicílio eleito representa também outra categoria que encontra a sua previsão normativa e sua fonte no ajuste entre as partes de um contrato: “nos contratos escritos, poderão os contratantes especificar domicílio onde se exercitem e cumpram os direitos e obrigações deles resultantes” (art. 78 CC). o Código prevê também a possibilidade de identificar o domicílio de quem de “não tenha residência habitual, o lugar onde for encontrada” (art. 73 CC). No caso das pessoas jurídicas (art. 75 CC) “o domicílio é I – da União, o Distrito Federal; II – dos Estados e Territórios, as respectivas capitais; III – do Município, o lugar onde funcionarem as respectivas diretorias e administrações, ou onde elegerem domicílio especial no seu estatuto ou atos constitutivos”. Além de prever que “se a pessoa jurídica tiver diversos estabelecimentos, cada um deles será considerado domicílio para os atos nele praticados”. O Domicílio Legal, que é ou era o local físico, é o lugar onde a pessoa responde por suas obrigações, ou o local onde assenta a sede principal de sua residência e de seus negócios2. No Direito Penal, em linha ao principio constitucional in dubio pro reu como definido pelo art. 5º, LVII, CF o conceito de domicílio parece ser mais amplo daquele individuado pelo Direito Civil. O art. 150, § 4º do Código Penal no definir o conceito de “casa”: “I – qualquer compartimento habitado; II – aposento ocupado de habitação coletiva; III – compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade; não se compreendendo: “I – hospedaria, estalagem ou qualquer outra habitação coletiva, enquanto aberta, salvo a restrição do n.º II do parágrafo anterior; II – taverna, casa de jogo e outras do mesmo gênero”. Ou seja, o significado de domicílio compreende não unicamente o de casa ou habitação, mas qualquer lugar reservado ao repouso ou ao exercício da atividade privada3. No Direito Tributário, a importância da exata determinação do domicílio tributário é essencial, sendo que é o lugar onde o contribuinte será e deverá ser cobrado. O Art. 127 do Código Tributário Nacional4 delimita as regras de destinação do domicílio efetivo, utilizando conceitos e definições próprios do Direito Civil (como os conceitos de residência efetiva, intenção de residir, sede, etc.). No Direito Trabalhista, se destaca que o trabalhador deve propor a reclamação trabalhista no local da prestação, podendo optar pelo local da contratação quando tiver executado atividades em locais diversos daquele onde foi celebrado o contrato, sempre ressalvando o principio da proteção da parte mais fraca da relação de trabalho, o trabalhador5. Na Carta Constitucional, o próprio caput estabelece: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes […]”. Em palavras mais simples, a Carta Constitucional estabelece que a proteção à inviolabilidade domiciliar se estende a todos brasileiros e/ou estrangeiros que se encontrem no território nacional. O domicílio é, portanto, um direito inviolável! É garantido a todos os brasileiros e os residentes no Pais. As únicas exceções a esta inviolabilidade – como vimos acima – devem ter previsão normativa e autorização pela Autoridade Judiciaria preventiva e competente. De qualquer forma a jurisprudência do STF evidenciou que existe a exceção da exceção, no sentido que em determinados casos a violação do domicílio não precisaria de autorização por parte da autoridade judiciária. A regra geral estabelece (art. 5º, inciso XI, da Constituição Federal) que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”. Todavia, o STF, com jurisprudência referente ao Recurso Extraordinário (RE) n. 603616, em via totalmente excepcional, confirmou a tese de que “em casos de busca e apreensão […] a execução forçada em domicílio sem mandato judicial só é licita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados”6. A ratio da decisão segue a tutela do interesse superior constitucionalmente protegido! No caso, a possibilidade de flagrar situações criminosas aptas a caracterizar o delito de trafico de drogas! Não existindo situações de flagrante delito não há legalidade em permitir qualquer violação de domicílio! Assim, a Autoridade Policial deve preventivamente verificar e acertar, por meio de investigações autorizadas, a existência de indícios suficientes referentes à materialidade e à autoria, que constituem a assim chamada justa causa necessária para poder justificar a violação do domicílio alheio sem mandado judicial. A presença da justa causa necessária confere, portanto, aos Agentes das forcas policiais a legitimidade necessária para sua ação7. Com a evolução da vida e das relações sociais, onde a internet e o mundo cibernético em geral, tomou conta do nosso dia a dia, assume importância a conceptualização e a utilização do assim sobre chamado “domicílio eletrônico”, em particular se referendo aos casos nos quais a publica administração proceda por meio eletrônico à intimação do sujeito passivo (ou contribuinte), permitindo a possibilidade de notificação eletrônica, com aviso de recebimento, através de (i) envio ao domicílio tributário eletrônico (DTE); (ii) registro em meio magnético ou equivalente8. No especifico, este procedimento encontra a própria fonte normativa na lei n. 11.196 de 2005 que instituiu o processo digital e a informalização das comunicações entre Publica Administração e contribuinte. Com a criação do domicílio eletrônico (ou endereço eletrônico de contato) e sua adoção pelo contribuinte, o destinatário da intimação se torna “necessariamente” (em quanto legitimado a receber a comunicação em qualquer momento) ciente de quaisquer tipos de atos administrativos, encaminhamentos de notificações e intimações (intimação eletrônica), expedição de avisos gerais, protocolos de documentos etc., independentemente de onde [o individuo] fisicamente se encontra. A evidenciar que esta revolução tecnológica está de fato acontecendo, com todas as suas consequências (entre das demais, se o próprio conceito de domicílio há a ser questionado), o Prof. Heleno Tavares Torres, bem oportunamente destaca que a notificação no endereço eletrônico de contato [mesmo que prevista por lei] deve respeitar as regras e as formalidades processuais, preservando-se os direitos fundamentais dos administrados, como a garantia ao devido processo legal e o direito de ampla defesa (veja-se, o art. 60, paragrafo 4º da Constituição Federal)9. Qual então a importância do domicílio ou do seu conceito estabelecido no sistema jurídico antigo até então? Meu endereço eletrônico tem o mesmo conceito de inviolabilidade estabelecido na Constituição Federal? O indivíduo ainda está obrigado a estabelecer uma residência permanente ou pode estar sujeito a diversas jurisdições pelo fato de que todas suas relações sociais, jurídicas e econômicas podem ser estabelecidas pelo meio cibernético. Podemos morar na rua e estabelecer como domicílio? 1 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, São Paulo, Saraiva, 2019; CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz. Comentários à Constituição Federal de 1988, São Paulo, Saraiva, 2013; SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2012. 2 DINIZ, Maria Helena . Curso de direito civil brasileiro: Teoria geral do direito civil, São Paulo, Saraiva, 2019. 3 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, São Paulo, Saraiva, 2014; NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal, Rio de Janeiro, Forense, 2014. 4 Veja-se – literalmente – o art. 127 CTN: Art. 127: “Na falta de eleição, pelo contribuinte ou responsável, de domicílio tributário, na forma da legislação aplicável, considera-se como tal: I – quanto às pessoas naturais, a sua residência habitual, ou, sendo esta incerta ou desconhecida, o centro habitual de sua atividade; II – quanto às pessoas jurídicas de direito privado ou às firmas individuais, o lugar da sua sede, ou, em relação aos atos ou fatos que derem origem à obrigação, o de cada estabelecimento; III – quanto às pessoas jurídicas de direito público, qualquer de suas repartições no território da entidade tributante. § 1º Quando não couber a aplicação das regras fixadas em qualquer dos incisos deste artigo, considerar-se-á como domicílio tributário do contribuinte ou responsável o lugar da situação dos bens ou da ocorrência dos atos ou fatos que deram origem à obrigação. § 2º A autoridade administrativa pode recusar o domicílio eleito, quando impossibilite ou dificulte a arrecadação ou a fiscalização do tributo, aplicando-se então a regra do parágrafo anterior”. Fonte: ConJur