Dizem que no Brasil de tédio não se morre. Se a máxima se aplica à população brasileira como um todo, constantemente brindada com notícias que revelam o quão largo é o horizonte do absurdo, ela é ainda mais precisa para retratar o estado de constante adrenalina em que estão envoltos os estudiosos e operadores do Direito Administrativo. Não há amanhecer desacompanhado da constatação de que a produção normativa e legislativa mira o infinito e além. Escovamos os dentes já cientes de que a pilha das leituras inadiáveis, por vezes jamais lidas, acaba de ganhar novo membro. E dá-lhe terapia e florais na tentativa de apaziguar o espírito. Apesar de o desejado encerramento do processo legislativo e o florescer da nova lei geral de licitações e contratos não ter vingado em 2019, o ano passado foi particularmente profícuo no critério “edição de leis e atos normativos em matéria de licitação e contratos”[1]. O tsunami normativo desafia o conceito de atualização profissional. Apenas os incautos podem, com algum grau de seriedade, afirmar-se em sintonia com o movimento do Diário Oficial da União, sem prejuízo do que se produz nas demais esferas de governo. Não coloco em dúvida que as alterações derivem, na sua quase totalidade, do reconhecimento do corpo técnico de que há o que aperfeiçoar ou corrigir. Ainda assim é perturbador e ainda assim desacertos são percebidos. Pois bem. Encerrando o ano (sem qualquer compromisso – ou capacidade mesmo – de afirmar que se tratou do ultimo ato normativo ou legal publicado), foi publicada a Medida Provisória nº 915[2], cujo propósito é aprimorar os procedimentos de gestão e alienação dos imóveis da União, alterando diversas leis, entre as quais e de forma mais impactante, a Lei 9.636, de 15 de maio de 1998[3]. Não se trata de alteração da disciplina nacional sobre alienação de bens públicos, cujas normas gerais constam em especial dos artigos 17 a 19 da Lei 8.666/93. Em verdade, a referida lei não é formalmente afetada pela MP. A ela a MP não alude. Daí que se imaginam respeitados os seus dispositivos. Vejamos se isso se confirma. A MP parte de um importante ponto. Há inúmeros imóveis da União geradores de despesas, desprovidos de finalidade e/ou abandonados[4], o que eleva a probabilidade de que estejam a descumprir o princípio constitucional da função social, flecha obrigacional que também alcança a propriedade pública[5]. Ademais, a MP reconhece a alienação dos imóveis como alternativa relevante. Aqui não há novidade. O art. 23 e o seu §1º da Lei 9636/98 já prescreviam que à Secretaria de Patrimônio da União (SPU) cabe pronunciar sobre a oportunidade e conveniência da alienação, a ocorrer quando não houver interesse público, econômico ou social em manter o imóvel no domínio da União, nem inconveniência quanto à preservação ambiental e à defesa nacional, no desaparecimento do vínculo de propriedade. A MP, entretanto, quer mais. Seu intuito é acelerar e flexibilizar o processo de alienação que perpassa, entre outras etapas, a avaliação do bem e a licitação. Avaliar o bem é passo sensível porque baliza o procedimento licitatório. Trata-se de fase que reclama profissional/entidade apta a fazer o exame. A isso se somam os elementos tempo e custo, e os dissabores estão postos. A MP tem como um de seus alvos exatamente o processo de avaliação. A comparação entre a redação até então em vigor do art. 11-C da Lei 9636/98 com a atual[6], pós MP, evidencia a preocupação com flexibilidade, ao admitir que a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) e a unidade gestora responsável possam contratar bancos públicos federais ou empresas públicas, com dispensa de licitação, sem prejuízo da contratação de empresa especializada. O protagonismo da Caixa Econômica Federal, antes figura central na fase de avaliação, é esmaecido. Outras regras convergem no espírito de destravar a avaliação. Admite-se, nas hipóteses de venda de terrenos em área urbana, de ate? duzentos e cinquenta metros quadrados, ou de imóveis rurais, de ate? cinquenta hectares, a avaliação por planta de valores. Mas o ponto mais interessante está em que a MP oportuniza ao interessado apresentar proposta de aquisição de imóveis não inscritos em regime enfitêutico ou em ocupação, mediante requerimento específico à Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União. Após pronunciamento estatal no sentido da conveniência da alienação, sem a sucessiva avaliação, o privado poderá providenciar às suas expensas, a avaliação do bem, valendo-se de avaliador habilitado ou empresa especializada (conforme art. 23-A, §3º, da Lei 9.636/98[7], acrescido pelo instrumento normativo em comento). O requerimento do particular e o eventual pagamento das despesas de avaliação não geram dever para a União de avançar no sentido de alienar o bem. Oscilações quanto ao juízo de oportunidade e conveniência são expressamente admitidas, consoante os acrescidos §§1º e 5º do art. 23-A da Lei 9.636/98[8]. O inusitado está no que prevê o acrescentado §6º do art. 24 da supradita lei[9]. Em síntese, a norma reconhece ao particular que tiver custeado a avaliação o direito de adquirir o imóvel, em condições de igualdade com o vencedor da licitação. A regra é obscura, na avaliação desta perturbada colunista. A redação do dispositivo deixa dúvidas sobre como se operacionaliza o tratamento favorecido. Estaria a regra a contemplar a possibilidade de o particular patrocinador da etapa avaliativa não precisar participar do certame, aguardando o seu desenrolar para, ao final, usufruir da prerrogativa de valer-se do que lhe salvaguarda a MP? A hipótese nos parece no mínimo inconstitucional, quando não condenada ao percurso em estrada de terra para o inferno de Dante. Mais provável é cogitar de outra interpretação segundo a qual, o interessado, não se sagrando vitorioso no certame, contaria com uma nova chance para assumir a titularidade do bem. A situação guarda alguma semelhança com o que dispõe o art. 45, I, da LC 123/06 que, todavia, está amortecido pelos artigos 170, IX e 179 da Constituição da República e alude a mecanismo de desempate. Não é o que temos aqui. A constitucionalidade do dispositivo é duvidosa. Lei voltada à alienação de imóveis da União pode, naquilo que não colidir com as normas gerais, adicionar um ou outro ajuste procedimental. Admitir que um terceiro revele seu interesse de comprar o bem não ofende preceito jurídico, até porque a esfera pública não pode atuar de forma ensimesmada. A permeabilidade estatal é reclamada pela Constituição de 1988. Porém, prever tratamento favorecido a alguém pelo simples fato de ter pago a avaliação não parece em sintonia com os princípios vetores da atividade administrativa e com as normas gerais de licitação. Assim, não há como admitir que na esfera federal o rito seja tão brutalmente discrepante do percurso ditado pela Lei 8.666/93. Ora, tratamentos diferenciados são, à luz do princípio da isonomia, excepcionais e se prestam para a consecução do interesse públicos e de outros valores e princípios igualmente constitucionais. Neste trilho, por exemplo, o tratamento favorecido às pequenas empresas e às empresas de pequeno porte se justificam. Em contrapartida, privilegiar aquele que pagou a avaliação é tratamento que não se presta a concretizar valor maior algum, senão o interesse meramente individual daquele que pagou e que teve condições financeiras para tanto. Não parece, sob a ótica desta colunista, que a mitigação da isonomia formal, no caso, se preste para a realização da isonomia material ou de qualquer outro vetor ou valor constitucionalmente protegido. Eis, portanto, a aparente inconstitucionalidade do dispositivo. Há ainda outras novidades. O art. 24-A da Lei 9.636/98[10], com a redação que lhe foi atribuída pela Lei 13.813/19, permite a venda direta de bens na hipótese de concorrência ou leilão deserto ou fracassado. Enquanto o caput autoriza a venda direta após uma licitação frustrada, o novo §1º do mesmo art. 24-A[11] prevê que se possa realizar a segunda concorrência ou leilão público com desconto de 25% sobre o valor de avaliação vigente. Assim, há trilhas que poderão ser seguidas. Nova tentativa de licitar é possível e, caso assim se decida, há espaço para o desconto acima referido. O recurso ao verbo “poder” suaviza, elimina o caráter imperativo. Paralelamente a essa possibilidade, a venda direta também estaria autorizada, com base no caput. Mas, na hipótese de concorrência ou leilão público deserto ou fracassado por duas vezes consecutivas, os imóveis serão disponibilizados automaticamente para venda direta, aplicado o desconto de 25% sobre o valor de avaliação. É o que aduz o incluído §2º do art. 24-A da Lei 9.636/98[12]. O tom imperativo salta aos olhos. Também se destaca a rigidez do percentual. O desconto, na literalidade da regra, é de 25% e não de até 25%, o que soa inapropriado porque impede que a União possa eventualmente alcançar o resultado desejado (venda) com menor sacrifício, o que, naturalmente, privilegiaria o interesse público . Veja-se, à guisa de conclusão, que a MP nº 915/19 traz uma série de mudanças e inserções que alteram a disciplina da gestão e alienação dos imóveis públicos da União. Espera-se que o Congresso Nacional ocupe-se de promover os ajustes necessários melhor conciliando gestão mais flexível e o apreço à juridicidade. [1] Importa citar, a título ilustrativo da dita produção normativa: o Decreto nº 10.024/19, que regulamenta a licitação, na modalidade pregão, na forma eletrônica, para a aquisição de bens e contratação de serviços comuns, incluídos os serviços comuns de engenharia, e dispõe sobre o uso da dispensa eletrônica no âmbito da administração pública federal; o Decreto nº 9.901/19, que altera o Decreto nº 9.203/17, que, por sua vez, dispõe sobre a política de governança da administração pública federal direta, autárquica e fundacional; a MP nº 896/19, que dispensa os órgãos da administração pública da publicação de editais de licitação, tomada de preços, concursos e leilões em jornais de grande circulação (ato normativo suspenso pelo Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, no escopo da ADI nº 6.229/19); e o Decreto nº 9.830/19, que regulamenta o disposto nos art. 20 ao art. 30 da LINDB, o que influi, ainda que indiretamente, no campo das licitações e dos contratos administrativos. [2] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Mpv/mpv915.htm> [3] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9636.htm> [4] É nesse sentido a exposição de motivos da medida provisória em consideração: “Além disso, o processo de alienação de imóveis é uma das alternativas identificadas para minimizar a existência de inúmeros imóveis da União em situação de abandono, que demandam altos custos com manutenção, sem nenhuma contrapartida de geração de receitas. Esses imóveis, invariavelmente, são alvo de invasões, depredações e outras situações que impactam sobremaneira a gestão patrimonial pela SPU. Deve-se ressaltar que há um conjunto importante de imóveis em risco iminente de colapso, colocando em risco a vida de pessoas, a destruição do meio ambiente e a perda do patrimônio público. Um exemplo é o Edifício Wilton Paes de Almeida, com 24 andares, em São Paulo, que desabou em maio de 2018. Da mesma forma, existem no país diversos outros imóveis, irregularmente ocupados e em situações precárias de uso e manutenção. É, portanto, urgente e relevante criar um mecanismo que viabilize a alienação ou destinação destes imóveis.” Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Exm/Exm-MP-915-19.pdf> [5] Já restou salientada, em oportunidade precedente, a necessidade de observância da função social da propriedade também no que se refere aos bens públicos, concluindo-se pela ausência de caráter absoluto da máxima segundo a qual os bens públicos não poderiam, em nenhuma circunstância, ser objeto de usucapião: “A Constituição da República não isenta os bens públicos do dever de cumprir função social. Portanto, qualquer interpretação que se distancie do propósito da norma constitucional não encontra guarida. Não bastasse a clareza do texto constitucional, seria insustentável conceber que apenas os bens privados devam se dedicar ao interesse social, desonerando-se os bens públicos de tal mister. Aos bens públicos, com maior razão de ser, impõe-se o dever inexorável de atender à função social.” Conferir: FORTINI, Cristiana. A Função Social dos Bens Públicos e o Mito da Imprescritibilidade. Revista de Direito Administrativo Municipal – RDM, Belo Horizonte, ano 5, n. 12, p. 113-122, abri./jun. 2004. [6] Art. 11-C. As avaliações para fins de alienação onerosa dos domínios pleno, útil ou direto de imóveis da União serão realizadas, permitida a contratação para isso de bancos públicos federais ou empresas públicas, com dispensa de licitação ou de empresa especializada: I - pela Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União; ou II - pelo órgão ou entidade pública gestora responsável pelo imóvel. [7] Art. 23-A. Qualquer interessado poderá apresentar proposta de aquisição de imóveis da União que não estejam inscritos em regime enfitêutico ou em ocupação, mediante requerimento específico à Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União (...)