A posse e a propriedade já não ostentam mais o caráter individualista e inviolável de outrora. Não se vive o clássico iluminismo, ou a era do terror, ou os ventos do laissez faire e do laissez passer. O domínio não é mais sagrado. Bom que assim o seja. A propriedade obriga e sobre ela pesa uma hipoteca socioambiental e livre de carbono. São tempos de mudanças do clima e de catástrofes ambientais causadas por fatores antrópicos. Regulação inteligente é necessária.
De outro lado, visões ultrapassadas de coletivismos da posse e da propriedade, de nefastos resultados, esboroaram-se, como é de notório saber, em face da realidade imposta pelas vicissitudes do espírito humano. Banidos devem ser os freios que barram o desenvolvimento ecologicamente sustentável, movido pelas hodiernas energias renováveis decorrentes, na sua implementação, de visionários espíritos empreendedores, públicos e privados, focados no longo prazo, característico de uma perspectiva intergeracional verde, incompatível, relevante enfatizar, com as queimadas, os desmatamentos e a indústria dos combustíveis fósseis.
Retornando as origens do tema abordado, Pontes de Miranda, com maestria, referia, nos seus dias, que “todo direito subjetivo é linha que se lança em certa direção. Até onde pode ir, ou até onde não pode ir, previsto pela lei, o seu conteúdo ou seu exercício, dizem-no as regras limitativas, que são regras que configuram, que traçam a estrutura dos direitos e da sua exercitação. O conteúdo dessas regras são as limitações. Aqui principalmente nos interessam as limitações ao conteúdo. O domínio não é ilimitável. A lei mesma estabelece limitações. Nem é irrestringível”.
Como referido pelo eminente Ministro Fachin, neste quadrante histórico, o “absolutismo no exercício da propriedade sofreu a intervenção de ideias que progressivamente construíram a doutrina denominada função social da propriedade”. Assim, diante da “passagem do individualismo para a coexistencialidade”, registra-se uma “virada de Copérnico”, cujas transformações se dão no tríplice vértice, ou seja, do contrato, da propriedade e da família. Inexiste, ao contrário do defendido no passado, separação absoluta entre o público e o privado, os “novos tempos traduzem outro modo de apreender tradicionais institutos jurídicos, móvel que sinaliza para a solidariedade social e a coexistencialidade”. Igualmente, Reale, ao comentar sobre a visão geral do Novo Código Civil, assevera que é “constante o objetivo do Código no sentido de superar o manifesto caráter individualista da lei vigente, feita para um País ainda eminentemente agrícola”. A atual legislação acolhe, ao contrário do Código Bevilaqua, o princípio da socialidade, juntamente com a eticidade e a operabilidade.
Pode-se dizer que a posse e a propriedade contemporânea contemplam não apenas direitos, mas também deveres por parte do possuidor e proprietário, é dizer, a posse e a propriedade obrigam socioambientalmente. Há, pois, uma redefinição dos direitos reais, de modo que interesses extraproprietários conformam o direito da posse e da propriedade, no contexto da constitucionalização e personalização do Direito Civil. Pode-se afirmar, sem rodeios, que a função social não é externa à propriedade, mas interna, como seu elemento constitutivo. É acertado dizer, como bem referiu o Ministro aposentado Grau, que o princípio da função social da propriedade “passa a integrar o conceito jurídico-positivo de propriedade”, sendo que “justamente a sua função justifica e legitima essa propriedade”.
A função social da propriedade encontra respaldo no atual texto constitucional, como se verifica nos artigos 5º, inc. XXIII, e 170, inc. III. O art. 182, §2º, da Lei Fundamental estabelece que a “propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”. O Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01), por seu turno, considera, no art. 39, que a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2º, muitas das quais relacionadas com a sustentabilidade socioambiental das cidades.
Já o art. 186 da Constituição Federal determina que a função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos requisitos do aproveitamento racional e adequado (inc. I), da utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente (inc. II), da observância das disposições que regulam as relações de trabalho (inc. III) e da exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e trabalhadores (inc. IV).
Igualmente, o art. 6º da Lei nº 8.629/93 (que regulamenta os dispositivos constitucionais sobre reforma agrária) dispõe que se considera propriedade produtiva aquela que, explorada econômica e racionalmente, atinge, simultaneamente, graus de utilização da terra e de eficiência na exploração, segundo índices fixados pelo órgão federal competente.
A relação do cumprimento da função social com a tutela do meio ambiente é reforçada no art. 9º desse mesmo diploma legal. É possível à União Federal, portanto, promover a desapropriação sancionatória para fins de reforma agrária por descumprimento da função social da posse e da propriedade (Lei nº 8.629/93, art. 2º e §1º), mediante pagamento de indenização por títulos da dívida agrária (art. 5º).
A função socioambiental da posse e da propriedade também está amparada no art. 2º da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/81), que traz diversos e benfazejos princípios a serem observados pelos possuidores e proprietários. O antigo Código Florestal de 1965 já previa que os direitos de propriedade deveriam ser exercidos de acordo com as limitações da legislação (Lei nº 4.771/65, art. 1º).
O Código Florestal vigente (Lei nº 12.651/12) reitera essa disposição e estatui que, na “utilização e exploração da vegetação, as ações ou omissões contrárias às disposições desta Lei são consideradas uso irregular da propriedade” (art. 2º, §1º). Também prescreve que a referida Lei atenderá, entre outros, ao princípio da “ação governamental de proteção e uso sustentável de florestas, consagrando o compromisso do País com a compatibilização e harmonização entre o uso produtivo da terra e a preservação da água, do solo e da vegetação” (art. 1º-A, parágrafo único, inc. III), bem como que “as obrigações previstas nesta Lei têm natureza real e são transmitidas ao sucessor, de qualquer natureza, no caso de transferência de domínio ou posse do imóvel rural” (art. 2º, §2º). Possuem as últimas, evidentemente, o caráter propter rem, no mesmo sentido das legislações ambientais nórdicas reguladoras da propriedade e da posse.
Os institutos da área de preservação permanente e da reserva legal, disciplinados no Código Florestal, “concretizam o princípio da função ecológica da propriedade e da posse, vinculando inúmeros deveres de proteção ambiental ao exercício e fruição do direito pelo seu titular”.
O Novo Código Civil, como já referido, acolhe o paradigma da socialidade no art. 1228, §1º, segundo o qual o “direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”.
Referido diploma, conclui-se, inseriu no conceito de propriedade, como já havia procedido o Constituinte originário de 1988, uma preocupação direta e manifesta com a tutela do meio ambiente. A propriedade e a posse devem ser garantidas dentro do Estado Socioambiental de Direito. Estas garantias são essenciais para o desenvolvimento sustentável do país. Todavia, para que os institutos da propriedade e da posse recebam proteção do ordenamento jurídico devem os mesmos obedecer parâmetros compatíveis com os direitos constitucionais fundamentais, prestacionais e fraternais, inseridos nesta era de desigualdade social e de mudanças climáticas bafejada por queimadas e desmatamentos criminosos realizados na Amazônia que ruborizam o povo brasileiro e geram grande preocupação na comunidade internacional.
*Gabriel Wedy é juiz federal, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafe), pós-doutor em Direito e visiting scholar pela Columbia Law School no Sabin Center for Climate Change Law.
Fonte: ConJur