Este artigo tem por objetivo analisar a interpretação do princípio do livre planejamento familiar, instituído na Constituição Federal de 1988 como direito fundamental. Para tanto, foram utilizadas técnicas de pesquisa a respeito do desenvolvimento histórico deste princípio, aliada à análise de dados, especialmente a respeito da efetividade da prestação, pelo Estado Brasileiro, de serviços que visem garantir o acesso ao planejamento familiar por cidadãos de todas as classes sociais. Como resultado, concluiu-se mesmo estando atualmente positivado como direito fundamental, o princípio do livre planejamento familiar, no Brasil, ainda encontra inúmeros óbices à sua efetivação, pelo que há de perquirir um longo caminho até que possa ser plenamente acessado e exercido.
Palavras-Chave: Família. Planejamento Familiar. Direitos Fundamentais. Constituição Federal.
Introdução
O Princípio do Livre Planejamento Familiar encontra respaldo legal no artigo 226, §7º da Constituição Federal, que assim estabelece:
“§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.”
Há, ainda, a previsão em lei ordinária, que regulamenta o direito fundamental estabelecido na Constituição Federal, a saber, o artigo 1.565, § 2º do Código Civil, que assim preleciona:
“§ 2o O planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício desse direito, vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas ou públicas.”
O Referido princípio encontra-se regulamentado, ainda, na Lei nº 9.263/1996, que assegura a todo cidadão o planejamento familiar de maneira livre, não podendo nem o Estado, nem a sociedade ou quem quer que seja estabelecer limites ou condições para o seu exercício dentro do âmbito da autonomia privada do indivíduo.
Trata-se de uma legislação mais voltada à implementação de políticas públicas de controle de natalidade e da promoção de ações governamentais dotadas de natureza promocional, que garantam a todos o acesso igualitário às informações, meios, métodos e técnicas disponíveis para a regulação da fecundidade.
Deste modo, todas as questões referentes às técnicas de inseminação artificial e engenharia genética encontram guarida e embasamento nesse preceito. Todos os indivíduos têm direito fundamental à saúde sexual e reprodutiva, devendo o Estado tratar os distúrbios de função reprodutora como problema de saúde pública, garantindo acesso a tratamento de esterilidade e reprodução assistida, bem como zelar para que os cidadãos tenham amplo e livre discernimento acerca da decisão a respeito da família que pretendem formar.
Recorte inicial
Antes de adentrarmos à análise proposta pelo trabalho em si, vale fazermos um primeiro recorte, avulso à matéria colocada em debate.
Para a melhor compreensão deste trabalho, faz-se necessário que a categoria dos direitos fundamentais brasileiros seja compreendida como sendo todos aqueles constantes do texto da Constituição Federal de 1988, e não apenas os elencados no rol do artigo 5º.
Esta interpretação é validada pelo próprio texto constitucional, quando, no §2º do já referido artigo 5 da Constituição federal, encontramos a afirmação de que “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”
Estabelecido este ponto, passamos a tratar do tema com mais detalhes.
Conceito
O Livre Planejamento Familiar pode ser entendido como sendo um direito fundamental que visa garantir a efetividade e o exercício de inúmeros outros direitos fundamentais - e, admitindo-se uma espécie de sopesamento entre estes, até mais basilares do que ele, como o direito à vida (da criança e da mãe), o direito à autonomia da vontade e à dignidade da pessoa humana.
É, pois, um direito fundamental que serve como pano de fundo para a efetivação de outros direitos, também fundamentais, em sua plenitude.
Contudo, antes que se possa debater a efetivação dos direitos que seriam alcançados com a efetivação do planejamento familiar, faz-se necessário analisar a efetivação dele próprio na prática.
Nesta toada, vimos que, segundo o texto constitucional colacionado acima, é dever do Estado “propiciar recursos educacionais e financeiros” para o exercício do direito ao livre planejamento familiar. Pois bem. Neste ponto, questiona-se: qual o atual status do cumprimento deste dever no Brasil?
Historicamente, podemos estabelecer alguns marcos normativos que colaboraram com a conquista do direito ao livre planejamento familiar como matéria constitucional.
De início, podemos estabelecer a nítida evolução trazida pela Constituição Federal de 1988 no que diz respeito ao conceito de “família”. Isso porque, no texto da constituição vigente, pela primeira vez restaram reconhecidas e garantidas como entidades familiares, por exemplo, a união estável (art. 226, §3º) e a “comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” (art. 226, §4º).
Além disso, com a atribuição ao Estado da obrigação de proteção à família e ao igualitário desenvolvimento social e humano dos cidadãos, a
Constituição Federal sem dúvidas abriu espaço para a discussão – necessária, aliás – a respeito do livre planejamento familiar.
Contudo, sabemos, na prática este direito ainda parece bastante distante de ter o seu exercício garantido. A tomada de medidas pelo Estado que efetivamente viabilizem o exercício deste direito ainda é, podemos dizer, praticamente inexistente.
Estas medidas, urgentemente necessárias, levariam então o cidadão à conscientização básica a respeito do que é mesmo planejar a formação de sua família – e não pura e simplesmente lidar com a realidade que se impõe, na maioria das vezes, de forma desorganizada.
O primeiro viés desta conscientização viria, por exemplo, da construção de um discernimento interno do indivíduo em relação à quantidade de membros que deseja ter na sua família, aqui considerada, especialmente, a quantidade de filhos que deseja ter versus a quantidade de filhos que a sua realidade econômica, financeira e social efetivamente lhe permite ter.
E diz-se “permite”, neste ponto, tomando por base a existência de um sentimento de responsabilidade em relação à vida da(s) criança(s) envolvidas neste meio, sendo elas já nascidas ou não.
Assim, o pleno exercício do direito ao livre planejamento familiar envolveria, desde a concepção do nascituro, com a garantia de acesso ao acompanhamento adequado da gestação e da formação do feto, pré-natal de qualidade e demais cuidados médicos que a gestante e a criança devem ter, além do necessário acompanhamento do regular desenvolvimento da criança após o seu nascimento, com acompanhamento pediátrico, acesso a imunização adequada, creches, educação de qualidade, moradia adequada, enfim, inúmeros outros direitos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) e que também passam longe de serem respeitados.
Vale dizer: neste ponto, nos deparamos com o claro embate entre o acesso ao livre planejamento familiar e o acesso à saúde e à educação - todos, precariamente exercidos no país.
Passemos, então, a debater a respeito de quais seriam essas possíveis medidas de atuação do Estado para a efetivação do direito ao livre planejamento familiar.
Profilaxia: possíveis formas de atuação do estado para a efetivação do direito ao planejamento familiar.
São diversos os meios e procedimentos passíveis de serem adotados e postos em prática pelo Estado a fim de se garantir, ainda que minimamente, o acesso ao livre planejamento familiar. A título de exemplo, podemos aqui elencar os seguintes:
- Promoção da prevenção da gravidez indesejada ou não planejada por mulheres adultas e/ou adolescentes: através da dissipação de informativos e programas de educação sexual;
– Programas de incentivo do uso e distribuição uso de preservativos de barreira, sem distinção de gênero: através do incentivo do uso do preservativo e da conscientização da necessidade de sua utilização não só como forma de prevenção da gestação, mas principalmente como prevenção de doenças sexualmente transmissíveis;
- Distribuição gratuita de pílulas anticoncepcionais através do Sistema Único de Saúde (SUS): disponibilização gratuita destes medicamentos, desde que devidamente acompanhados da orientação médica a respeito de sua eficácia e riscos envolvidos;
- Disponibilização de técnicas de esterilização definitivas (masculina e feminina) também pelo SUS, desde que a opção por elas seja voluntária e espontânea e, sempre, devidamente acompanhada de informação precisa sobre os efeitos e consequências envolvidos nos procedimentos.
Todos estes meios, acredita-se, poderiam levar ao menos ao início da efetivação do direito ao livre planejamento familiar, já que, com a conscientização da população a respeito da possibilidade de valer-se deste tipo de planejamento, certamente os outros direitos mencionados acima estariam protegidos e, assim, também alcançados na prática.
O outro lado da questão
Por outro lado, existem famílias que, ao invés de buscarem o planejamento familiar no sentido de diminuir o número de integrantes de seu nicho, pretendem, na verdade, aumenta-lo.
Para tanto, contam com as controversas e caríssimas técnicas de reprodução assistida atualmente disponíveis no Brasil, porém, todas elas, ainda sem qualquer regulamentação legal – a não ser a Resolução nº 2.168/2017, do Conselho Federal de Medicina.
Dentre essas técnicas, podemos destacar as seguintes:
- Inseminação artificial – consiste na disposição médica do material genético masculino na camada intrauterina da mulher. O gameta masculino pode ser doado pelo próprio homem formador da entidade familiar (denominando-se, assim, a técnica como homogênea), ou por um terceiro alheio a eles, cuja identidade é mantida em sigilo (técnica heterogênea); e
- Fertilização in vitro – consiste na formação do embrião, com material genético de ambos os genitores (técnica homogênea) ou de um deles adicionado aos gametas de um terceiro doador (técnica heterogênea), em laboratório, para posterior inserção na camada intrauterina da mulher.
Em ambas as técnicas, a formação do nascituro dá espaço também a inúmeras outras discussões de ordem legal, tais como a discussão acerca dos direitos à identidade genética e direitos sucessórios da criança em relação ao terceiro doador dos gameta, a polêmica acerca da manutenção ad eternum e o descarte de embriões já formados, ante a sua inutilização provisória e, ainda, a proibida, mas existente, manipulação genética dos embriões a fim de se alcançar a uma “preferência” dos pais – como, por exemplo, a escolha apenas por embriões do sexo masculino.
Todas estas possibilidades, entretanto, mostram-se acessíveis a apenas e tão somente uma parcela mínima da população, cuja realidade financeira permite discutir, em ambiente médico e com os cuidados adequados, o futuro da formação de sua família.
Infelizmente, contudo, não é esta a realidade que se implementa para a vasta maioria dos cidadãos brasileiros. Como resultado disso, sem o acesso ao planejamento familiar adequado e tampouco a técnicas médicas que os socorram, assistimos recentemente a um constante aumento no número de abortos praticados no Brasil – números estes que, ainda que não reconhecidos oficialmente, nos confirmam a necessidade de discussão acerca deste difícil tema.
Aborto
No Brasil, atualmente o aborto apenas é permitido quando há comprovado risco de vida para a mãe, ou ainda em casos de estupro ou quando comprovada a formação de feto anencéfalo (parcial desenvolvimento do tecido cerebral), sendo que, esta última hipótese, resultou do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) de número 54 pelo Supremo Tribunal Federal em 2012.
Mais recentemente, ao analisar o Habeas Corpus nº 124306/RJ em 2016, o STF enfrentou novo julgamento sobre a matéria e, dessa vez, decidiu pela possibilidade de exclusão da culpabilidade do aborto cometido até o 3º mês de gravidez. Este julgamento, contudo, não foi realizado em plenário e, portanto, não possui efeito erga omnes. Em breve, a matéria deverá ser novamente debatida, desta vez em plenário e já à sombra deste relevantíssimo precedente.
Ao proferir o voto-vista que serviu de base para o julgamento neste sentido, o Ministro Luis Barroso reconheceu o dever do Estado em promover meios de acesso ao exercício do planejamento familiar, a fim de que a prática do aborto seja evitada. Tudo, pois, em consonância com o quanto debatido e defendido acima.
Pesquisando no direito comparado, temos que, na Alemanha, desde 1995 o aborto é permitido quando realizado até o 3º mês de gestação, sendo necessário o acompanhamento psicológico da mulher. Em casos excepcionais, a interrupção é permitida em qualquer estágio da gestação.
Além disso, em países da América do Sul, como a Colômbia e o Uruguai, também permitem o aborto de forma semelhante à maioria dos países europeus: até o terceiro mês, com comprovado risco à saúde da gestante.
Mais recentemente, vimos a aprovação, pela Câmara dos Deputados da Argentina, do projeto de lei que prevê a legalização do aborto, descriminalizando-o quando praticado até a 14ª semana de gestação. O projeto argentino ainda seguirá para a apreciação pelo Senado.
Inegavelmente, ainda que bastante polêmica a questão, parece indispensável pensarmos que a discussão acerta da descriminalização do aborto no Brasil é questão urgente e que merece a devida discussão o mais rápido possível.
Conclusão
De acordo com o todo exposto acima, concluímos que, positivado como está, o planejamento familiar representa um direito fundamental e que, por assim ser, não pode ser restringido, devendo ter seus inúmeros obstáculos efetivamente enfrentados e vencidos.
Como direito fundamental que é, ao livre planejamento familiar é conferido uma eficácia reforçada em sua aplicabilidade, dado que os direitos fundamentais, considerados em seu sentido amplo, ainda que não tenham sua intangibilidade expressamente assegurada, afiguram-se como pontos indissociáveis da própria condição de subsistência da Lei Maior.
É evidente que há inúmeros desafios a serem superados pelo estado brasileiro a fim de que se efetive o acesso ao exercício do livre planejamento familiar e, com ele, o acesso aos tantos outros direitos fundamentais que o seguem, tais como o direito à vida, à liberdade e, principalmente, à dignidade da pessoa humana.
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*Camila Monzani Gozzi é Mestranda em Direito na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Especialista em Direito de Família e Sucessões pela Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão da PUC-SP (COGEAE-PUC-SP). Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Fonte: IBDFAM