Do ponto de vista do ganho de capital de imóvel rural, tema pouco discutido diz respeito à operação de alienação daquele por pessoa jurídica optante pelo lucro real.
Como é de conhecimento e já exposto em outro texto desta mesma coluna[1], o ganho de capital consiste na diferença positiva entre o custo de aquisição de um imóvel e o valor de alienação, de tal sorte que, por força da autorização constitucional para se tributar a renda (artigo 153, inciso III, CF), bem como a previsão estabelecida no artigo 43, do Código Tributário Nacional, referido acréscimo patrimonial, nos termos da lei, poderá ser objeto de exigência do Imposto de Renda.
Em geral, o ganho de capital do imóvel rural possui peculiaridades, uma vez que preceitua o artigo 19 da Lei 9.393/96:
“Valores para Apuração de Ganho de Capital
Art. 19. A partir do dia 1º de janeiro de 1997, para fins de apuração de ganho de capital, nos termos da legislação do imposto de renda, considera-se custo de aquisição e valor da venda do imóvel rural o VTN declarado, na forma do art. 8º, observado o disposto no art. 14, respectivamente, nos anos da ocorrência de sua aquisição e de sua alienação.
Parágrafo único. Na apuração de ganho de capital correspondente a imóvel rural adquirido anteriormente à data a que se refere este artigo, será considerado custo de aquisição o valor constante da escritura pública, observado o disposto no art. 17 da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995”.
Portanto, a primeira conclusão a que chegamos é no sentido de que: (i) a tributação do ganho de capital deve levar em consideração a lei especial (Lei 9.363/96) quanto aos imóveis rurais; (ii) o custo de aquisição e de alienação, para fins de ganho de capital, será com base no artigo 19 da Lei 9.363/96; (iii) os bens e direitos com aquisição anteriores ao ano de 1997, é possível atualização monetária até 31/12/1995 para as pessoas físicas e jurídicas no lucro presumido; (iv) a partir de 1/1/1997, o valor de “alienação” para apuração do ganho de capital será o VTN declarado.
Percebe-se, assim, uma significativa diferença, já que para os imóveis adquiridos a partir de janeiro de 1997 há de se aplicar para fins de custo de aquisição e alienação o Valor da Terra Nua (VTN). Será, deste modo, o VTN declarado segundo disposto no artigo 8 da Lei 9393/96[2], observando-se o disposto no artigo 14 da mesma legislação[3].
O ponto, no entanto, que neste texto buscamos tratar é a possibilidade de se utilizar de referido artigo 19 da Lei 9.393/96 para fins de apuração do ganho de capital de imóvel rural para pessoa jurídica no lucro real.
A dúvida existe, inclusive, pelo fato de que, ao contrário das pessoas físicas[4] e jurídicas no lucro presumido[5], que o Decreto 9.580/2018 (RIR) claramente esclarece que referido texto normativo se aplica em tais hipóteses, há silêncio absoluto para a pessoa jurídica optante pelo lucro real (não há expressa previsão de aplicação, como inexiste expressa vedação).
Isto torna o tema ainda mais complexo e controvertido.
Em nossa visão, a apuração de ganho de capital do imóvel rural por meio da Lei 9.393/96 é uma lei especial[6], que há de ser aplicada exatamente à regulação peculiar que pretende disciplinar, qual seja: o imposto sobre a renda na modalidade de ganho de capital quando houver alienação de imóvel rural.
Neste sentido, José de Oliveira Ascensão esclarece que: “o regime geral não toma em conta as circunstâncias particulares que justificaram justamente a emissão da lei especial. Por isso não será afectada em razão de o regime geral ter sido modificado”[7].
Portanto, o artigo 19 da Lei 9.393/96 não revoga as disposições a título de ganho de capital em geral, anteriores e posteriores (salvo previsão expressa em contrário), tanto é verdade que as alíquotas aplicáveis seguirão a regra geral da legislação. No entanto, este dispositivo, dada a sua especialidade, é que regula a forma de apurar eventual ganho (resultado positivo) a ser tributado pelo IR quando ocorrer a alienação de um imóvel rural.
Há clara aplicação da especialidade[8], com isso, as regras gerais sobre ganho de capital de imóvel somente serão aplicáveis naquilo que a lei específica não disciplinar ou expressamente excepcionar, enquanto for vigente.
Este seria o primeiro argumento para justificar juridicamente a possibilidade de aplicação do artigo 19 da Lei 9.393/96 ao imóvel rural para pessoa jurídica no lucro real.
A segunda observação vem da máxima de que o que não está proibido está permitido, nos termos da regra da legalidade (artigo 5º, II, CF). Isto porque inexiste expressa vedação em lei, ou mesmo no Regulamento do Imposto de Renda (RIR).
Para finalizar, convém citar o parágrafo único do artigo 19 da Lei 9.393/96, que dispõe:
“Parágrafo único. Na apuração de ganho de capital correspondente a imóvel rural adquirido anteriormente à data a que se refere este artigo, será considerado custo de aquisição o valor constante da escritura pública, observado o disposto no art. 17 da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995”.
Referido dispositivo determina que, para imóveis rurais adquiridos anteriormente ao mês de janeiro de 1997, o custo de aquisição (e não o valor da alienação) será o constante da escritura pública, levando-se em consideração o artigo 17 da Lei 9.249/95.
Por sua vez, este artigo 17 preceitua:
“Art. 17. Para os fins de apuração do ganho de capital, as pessoas físicas e as pessoas jurídicas não tributadas com base no lucro real observarão os seguintes procedimentos:
I - tratando-se de bens e direitos cuja aquisição tenha ocorrido até o final de 1995, o custo de aquisição poderá ser corrigido monetariamente até 31 de dezembro desse ano, tomando-se por base o valor da UFIR vigente em 1º de janeiro de 1996, não se lhe aplicando qualquer correção monetária a partir dessa data;
II - tratando-se de bens e direitos adquiridos após 31 de dezembro de 1995, ao custo de aquisição dos bens e direitos não será atribuída qualquer correção monetária”.
Vê-se, assim, que a lei especial, ao tratar de imóveis rurais anteriores ao mês de janeiro de 1997, estabelece a título de ganho de capital alguns ajustes na base de cálculo do custo de aquisição. Esse dispositivo, ao permitir uma atualização monetária dos valores, esclarece que referido direito se dá somente à pessoa física e jurídica optante pelo lucro presumido.
Numa interpretação lógica a contrario sensu, percebe-se que o ganho de capital de imóvel rural, mesmo para aquisições anteriores ao mês de janeiro de 1997, seguirá para as pessoas físicas e jurídicas o critério disposto no artigo 19 da Lei 9.393/96, porém, a atualização monetária do custo de aquisição não é permitida àquela optante pelo lucro real.
Por conseguinte, salvo esta exceção prevista na lei especial, o restante se aplicaria inteiramente, até porque não cabe a intérprete distinguir o que a lei não distingue (máxima de igualdade).
Não obstante tais ponderações, importante esclarecer que há recente decisão da Câmara Superior do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) no sentido de que:
Na alienação de imóvel rural, para fins de apuração do ganho de capital pelas pessoas jurídicas, deve ser considerado como custo de aquisição o valor contábil do bem alienado. Inexistente a contabilização, correto o procedimento que toma como custo de aquisição os valores constantes dos contratos de compra e venda dos imóveis alienados”[9].
Com todo respeito, o voto vencedor não enfrenta as ponderações acima expostas, adotando como razão decidir simplesmente o fato de que o RIR/99 somente autorizaria no caso de optante pelo lucro presumido (artigo 523).
De conformidade com todas as razões já expostas, há evidente equívoco em referido argumento, pois: (i) a lacuna legislativa no RIR não seria vedação, até porque este somente tem função de sistematizar a legislação; (ii) o artigo 19 da Lei 9.393/96 é lei especial e disciplina o ganho de capital de imóvel rural, sem trazer qualquer exceção, de tal sorte que não cabe interpretações que inovem a legislação, violando a própria igualdade (não cabe a interprete distinguir o que a lei não distingue); (iii) a exceção existente na Lei 9.393/96, em seu artigo 19, parágrafo único, quanto aos imóveis adquiridos anteriormente ao mesmo de janeiro de 1997, deixa claro que a pessoa jurídica no lucro real está submetida a esta disciplina, a partir da vigência daquela legislação.
Nesse sentido, declaração de voto da conselheira Cristiane Silva Costa:
“Note-se que o parágrafo único, acima reproduzido, prevê a forma de apuração do ganho de capital quanto ao imóvel rural adquirido antes de 1º de janeiro de 1997. Neste caso, consta a ressalva que deve ser “observado o disposto no art. 17 da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995”.
Assim, quanto à norma disposta no parágrafo único, do artigo 19, da Lei nº 9.393/1996 (portanto, para apuração de ganho de capital antes de 1997) é clara a ressalva para aplicação apenas para pessoas jurídicas “não tributadas com base no lucro real”. (termo empregado no artigo 17, da Lei nº 9.249/1995)
A ressalva, no entanto, não foi disposta pelo legislador quando trata do ganho de capital a partir de 1º de janeiro de 1997, conforme caput do artigo 19, da Lei nº 9.393/1996, acima reproduzido. Diante disso, a opção para inserção do artigo 19 no artigo 523, do RIR/1999, no SUBTÍTULO IV LUCRO PRESUMIDO, não altera a disposição legal, sem qualquer ressalva (para optantes pela apuração do lucro real a partir de 1997)”.
Em tais condições, possível concluir que existem fundamentos jurídicos para se aplicar o artigo 19 da Lei 9.393/96 quanto ao ganho de capital de imóvel rural quando a pessoa jurídica alienante optar pelo lucro real.
[1] https://www.conjur.com.br/2017-mai-05/direito-agronegocio-peculiaridades-relacao-ganho-capital-imovel-rural
[2] Art. 8º O contribuinte do ITR entregará, obrigatoriamente, em cada ano, o Documento de Informação e Apuração do ITR - DIAT, correspondente a cada imóvel, observadas data e condições fixadas pela Secretaria da Receita Federal. § 1º O contribuinte declarará, no DIAT, o Valor da Terra Nua - VTN correspondente ao imóvel. § 2º O VTN refletirá o preço de mercado de terras, apurado em 1º de janeiro do ano a que se referir o DIAT, e será considerado auto-avaliação da terra nua a preço de mercado. § 3º O contribuinte cujo imóvel se enquadre nas hipóteses estabelecidas nos arts. 2º e 3º fica dispensado da apresentação do DIAT.
[3] “Art. 14. No caso de falta de entrega do DIAC ou do DIAT, bem como de subavaliação ou prestação de informações inexatas, incorretas ou fraudulentas, a Secretaria da Receita Federal procederá à determinação e ao lançamento de ofício do imposto, considerando informações sobre preços de terras, constantes de sistema a ser por ela instituído, e os dados de área total, área tributável e grau de utilização do imóvel, apurados em procedimentos de fiscalização.§ 1º As informações sobre preços de terra observarão os critérios estabelecidos no art. 12, § 1º, inciso II da Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, e considerarão levantamentos realizados pelas Secretarias de Agricultura das Unidades Federadas ou dos Municípios.§ 2º As multas cobradas em virtude do disposto neste artigo serão aquelas aplicáveis aos demais tributos federais.”
[4] “Art. 146. Em relação aos imóveis rurais adquiridos a partir de 1º de janeiro de 1997, para fins de apuração de ganho de capital na alienação da terra nua, considera-se custo de aquisição e valor da venda o valor da terra nua, constante do Documento de Informação e Apuração do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural relativo ao ano da aquisição e ao ano da alienação, respectivamente, observado o disposto no art. 14 da Lei nº 9.393, de 19 de dezembro de 1996 (Lei nº 9.393, de 1996, art. 19, caput) .Parágrafo único. Na apuração de ganho de capital correspondente a imóvel rural adquirido anteriormente a 1º de janeiro de 1997, será considerado custo de aquisição o valor constante da escritura pública, observado o disposto no art. 139 (Lei nº 9.393, de 1996, art. 19, parágrafo único).”
[5] “Art. 596. Para fins de apuração de ganho de capital, considera-se custo de aquisição e valor da venda do imóvel rural o valor da terra nua constante do Documento de Informação e Apuração do ITR, observado o disposto no art. 14 da Lei nº 9.393, de 1996 , nos anos da ocorrência de sua aquisição e de sua alienação, respectivamente(Lei nº 9.393, de 1996, art. 19, caput ) .Parágrafo único. Na apuração de ganho de capital correspondente a imóvel rural adquirido anteriormente a 1º de janeiro de 1997, será considerado como custo de aquisição o valor constante da escritura pública, observado o disposto no parágrafo único do art. 146 (Lei nº 9.393, de 1996, art. 19, parágrafo único.”
[6] Art. 2º - LIND: “§ 2º A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior”.
[7] O Direito – Introdução e teoria geral, Coimbra, Almedina, 1991, n. 322, I, p. 541.
[8] Lex posterior generalis non derogat priori speciali / legi speciali per generalem non abrogatur.
[9] CARF, CSRF, AC. 9101004.068 - – 1ª Turma, j. 13/09/2019.
* Fábio Pallaretti Calcini é advogado tributarista, sócio do Brasil Salomão e Matthes Advocacia. É doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal) e ex–membro do Carf.
Fonte: Conjur