A Lei que inseriu os dispositivos referentes ao georreferenciamento na Lei dos Registros Públicos (Lei nº 10.267, de 28 de agosto de 2001) foi silente no que tange aos procedimentos, cabendo esta tarefa ao seu regulamento.
O Decreto nº 4.449, de 30 de outubro de 2002, ao regulamentar os dispositivos inseridos na Lei dos Registros Públicos, passou a exigir que houvesse declaração de que foram respeitados os direitos dos confrontantes (§ 5º do artigo 9º) e também que a documentação fosse acompanhada de declaração expressa dos confinantes de que os limites divisórios foram respeitados, com suas respectivas firmas reconhecidas (§ 6º do artigo 9º).
Tais anuências eram apresentadas ao INCRA, como condição para a certificação. Posteriormente, foi retirado do INCRA o encargo de examinar a situação dominial e também de exigir anuência dos lindeiros, transferindo para o Registro de Imóveis essa função e tornando o processo de certificação extremamente ágil naquele órgão.
O Registro de Imóveis, por força da obrigação legal de examinar as questões dominiais envolvendo o imóvel, de exigir documentação técnica e certificação do INCRA, e de ter assumido a função de examinar a anuência dos lindeiros, enquadrou o georreferenciamento no rol das retificações de matrícula previsto no artigo 213 da Lei dos Registros Públicos, colocando-o como espécie do gênero retificação.
Tal enquadramento é perfeito e inatacável, trata-se efetivamente de uma modalidade de retificação, mas com regras próprias. Esse é o ponto fundamental que pretendo alcançar neste artigo: o georreferenciamento, embora sendo uma espécie de retificação, tem regras próprias, não devendo ser simplesmente enquadrado na regra do artigo 213, II, da LRP. Os procedimentos relativos ao georreferenciamento estão regulados em legislação especial, e não no artigo 213 da LRP.
Ao analisarmos a aplicação no tempo, sabe-se que a lei nova revoga (ab-roga ou derroga) norma anterior que com ela conflite. A derrogação pode ser expressa ou tácita, ocorrendo esta última hipótese quando a lei nova tratar da mesma matéria prevista na legislação anterior, porém de forma diversa. Sendo assim, não tenho pejo em dizer que a lei nova (nº 13.838, de 2019) derrogou parcialmente a Lei dos Registros Públicos.
E se levarmos em consideração a hierarquia das leis, veremos que uma lei nova não precisa revogar expressamente norma constante em decreto. Portanto, muito embora pareça viger o disposto no § 6º do artigo 9º do Decreto 4.449, de 2002 (exigência de anuência dos lindeiros no georreferenciamento), ele foi derrogado com a edição da Lei 13.838, de 4 de junho de 2019.
Igualmente, é sobejamente conhecido o princípio geral de Direito de que a norma especial (a mais específica) prevalece sobre a lei geral. Portanto, o disposto no artigo 213, II, da Lei dos Registros públicos, que estabelece normas gerais sobre a retificação, não pode ser oposto aos procedimentos de georreferenciamento, aos quais lei específica dispensou da anuência dos lindeiros.
A Lei nº 13.838, de 4 de junho de 2019, veio a estabelecer um marco desburocratizante no que diz respeito ao georreferenciamento de imóveis rurais, ao abolir a necessidade de anuência dos lindeiros para que a identificação do imóvel tivesse ingresso no álbum imobiliário.
Respeito muito o Colégio Registral do RS e o Instituto de Registro Imobiliário do RS e seus preclaros e diligentes diretores e articulistas. Trata-se de mais do que respeito, é confessada admiração pela capacidade de trabalho e conhecimentos que advém daqueles juristas.
Mas não posso deixar de externar meu estranhamento com a edição do COMUNICADO CONJUNTO Nº 010/2019, em que é defendida a manutenção da necessidade de anuência dos lindeiros na esmagadora maioria dos georreferenciamentos.
Num tempo em que clamamos por desburocratização e simplificação de procedimentos, abrir mão da faculdade (mais que isso, obrigatoriedade) de dispensar anuência dos lindeiros nos casos de georreferenciamento, merece mais estudos, servindo o presente artigo apenas como alerta.
Bem sei, está escrito, que as orientações das entidades de classe não são de caráter cogente, não obrigam os associados nem os registradores de imóveis em geral. Mas não pude silenciar.
Assim, é com renovado respeito e admiração que ponho o tema em rediscussão.
Pelotas, junho de 2019
Mario Pazutti MezzariRegistrador de Imóveis
Cartório da 1ª Zona da Comarca de Pelotas