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Artigo - Impedir a declaração unilateral de divórcio é negar a natureza das coisas - Por Mário Luiz Delgado e José Fernando Simão

1. Uma breve introdução necessária à compreensão do tema

Para dizer o óbvio, vivemos uma fase de rápidas e profundas mudanças em termos de Direito de Família que decorrem de rápidas e profundas mudanças de costumes e de hábitos sociais que decorrem de um século XXI alucinante. Se a noção de tempo deixou de ser a mesma em razão de uma possibilidade de aproveitamento infinitamente maior da vida (graças à tecnologia), é também um momento de angústia para o ser humano que vê o conhecido passado sendo solapado com rapidez por um futuro assustador, desconhecido e de insegurança. Futuro que, de repente, já chegou.

Esse “futuro” é um tempo de celeridade, de facilidade, de desburocratização e novos paradigmas sociais, quer aceitemos ou não. Com o Direito de Família não poderia ser diferente.

Vejamos essas mudanças “desburocratizantes” que já foram implementadas no século XXI. Quanto à parentalidade, o TJ-PE, por meio de provimento de autoria do desembargador Jones Figueiredo Alves (Provimento 9 de 2013), admitiu o reconhecimento extrajudicial da paternidade socioafetiva, sem a necessidade de sentença para tanto. Basta, pelo provimento, a declaração pelo interessado que se assume pai afetivo de alguém. O provimento foi bastante elogiado pela desburocratização e, muito posteriormente, o CNJ regulamentou a questão no Provimento 63 de 2017.

Na conjugalidade, o TJ-PE, de maneira pioneira, disciplinou a possibilidade de pacto antenupcial para as pessoas que devem se casar pelo regime de separação obrigatória de bens (artigo 1.641 do CC). O Provimento 6 de 2016, novamente da lavra do desembargador Jones Figueiredo Alves, permite que se adote a separação total de bens para que se evite a incidência da Súmula 377 do STF. Isso afasta todas as questões tormentosas que a súmula tem gerado (há necessidade de prova do esforço comum?).

Ainda, na conjugalidade, foram os diversos tribunais de Justiça (em sua maioria da região Nordeste do Brasil) que alteraram suas normas de maneira a admitir o casamento de pessoas do mesmo sexo, muito antes de o CNJ o admitir por meio da Resolução 175 de 2013. Não nos esqueçamos que não há no Código Civil nenhum artigo que trate do tema. Os casamentos ocorrem por decisão do CNJ, e não do parlamento.

Assim, antes mesmo de o CNJ regulamentar o tema para todo o Brasil, tínhamos a admissão de casamento homoafetivo por força de orientação dos tribunais de Justiça:

• Paraná: instrução da Corregedoria de 26 de março de 2013;
• São Paulo: provimentos CGJ 41/12 e 06/13, que alteram o Provimento 58 de 1989;
• Mato Grosso do Sul: provimento 80, de 2 de abril de 2013, que alterou o Código de Normas;
• Sergipe: Provimento 6, de 5 de julho de 2012;
• Piauí: Provimento 24, de 14 de dezembro de 2012;
• Bahia: Provimento Conjunto CGJ/CCI – 12/2012, de 4 de outubro de 2012;
• Alagoas: Provimento 40, de 6 de dezembro de 2011;
• Espírito Santo: Ofício Circular 59/12.

Fato é que há muito tempo o Congresso brasileiro deixou de legislar em matéria de família. É a jurisprudência que tem dado a roupagem do atual Direito de Família, com base em procedimentos administrativos dos tribunais de Justiça e do CNJ.

2. E o divórcio como fica nesse momento histórico?
Com o advento da Lei 11.441/2007, tornou-se possível no Brasil o divórcio administrativo ou extrajudicial em cartório, desde que inexistissem filhos menores ou incapazes e as partes estivessem em acordo.

E quem regulamentou a Lei 11.441/07? O CNJ, em sua Resolução 35. Não houve reclamações na época, mesmo porque essa resolução, de maneira contra legem, mantém no sistema a figura da separação judicial, o que interessa aos setores mais retrógrados do Direito de Família.

A alteração legislativa restringiu a intervenção do Estado na vida privada das pessoas, na medida em que possibilitou que os inventários e os divórcios consensuais, sem filhos menores ou incapazes, não necessitavam mais se submeter à tutela prévia do Poder Judiciário, já combalido e assoberbado com tantas demandas judiciais.

E é lógico que seja assim. Se não se exige prévia intervenção judicial para o casamento, por que razão haver-se-ia de exigir tal intervenção para dissolução do vínculo conjugal. Tanto a constituição do vínculo como o seu desfazimento são atos de autonomia privada e como tal devem ser respeitados, reservando-se a tutela estatal apenas para hipóteses excepcionais.

Entretanto, para que os cônjuges possam lavrar a escritura de divórcio, precisam entrar “em acordo”. O artigo 733 do CPC atual prevê que somente o “divórcio consensual, a separação consensual e a extinção consensual de união estável poderão ser realizados por escritura pública”. Portanto, as regras legais atuais exigem que a escritura seja subscrita obrigatoriamente por ambos os cônjuges, e isso nem sempre é possível. Um dos cônjuges pode se negar a concordar com o pedido de divórcio até mesmo por capricho ou por receio de uma atitude violenta do outro. Também são comuns as situações em que um dos cônjuges se encontre em local incerto e não sabido.

Para superar essas dificuldades, que impedem o pleno exercício do direito fundamental de dissolver o casamento, surgiu uma nova modalidade de divórcio administrativo, que independe de escritura pública e pode ser requerida diretamente ao RCPN, de forma unilateral por qualquer dos cônjuges, ainda que com a oposição do outro: o chamado “divórcio impositivo” ou “divórcio direto por averbação”. Defende-se, por meio desse novo instrumento, a possibilidade de atribuição da faculdade a um só dos cônjuges de requerer, perante o registro civil, em cartório onde lançado o assento do seu casamento, a averbação do seu divórcio, à margem do respectivo assento[1].

Esse requerimento de divórcio direto, por averbação, seria facultado somente àqueles que não tenham filhos menores ou incapazes nem estejam em estado gravídico, observando-se, assim, os requisitos gerais do artigo 733 do CPC e afastando qualquer pecha de ilegalidade. A averbação deve ser feita pelo registrador civil independentemente da presença ou da anuência do outro cônjuge, que seria apenas notificado, para fins de prévio conhecimento da averbação pretendida, vindo o oficial do registro, após efetivada a notificação pessoal, proceder com a devida averbação do divórcio.

O “divórcio impositivo” foi previsto em provimento pioneiro da Corregedoria-Geral de Justiça de Pernambuco, aprovado em 13 de maio de 2019 (Provimento 6/2019), visando estabelecer medidas desburocratizantes ao registro civil, nos casos do divórcio, por ato de autonomia de vontade de um dos cônjuges[2]. Novamente, Pernambuco sai à frente do Brasil.

Ora, o divórcio, desde o advento da Emenda Constitucional 66/2010, deixou de ser um direito subjetivo comum, ainda que dotado de fundamentalidade, para se transformar em um direito potestativo, contra o qual nem o outro cônjuge nem o Estado-juiz podem se opor. Requerida judicialmente a dissolução ou desconstituição do vínculo por um dos cônjuges, o outro não pode se opor ou contestar, mas somente se sujeitar. O direito de pedir o divórcio não pode ser violado, pouco importam as razões do inconformismo do outro cônjuge. A contestação ou discordância daquele contra quem for deduzido o pedido de divórcio não possui qualquer relevância nem pode obstar a prolação do decreto de dissolução do vínculo. Daí a natureza de direito fundamental potestativo. Assim, não faz sentido que um simples pedido de divórcio, que não é passível de “contestação”, fique a depender da chancela judicial somente porque um dos cônjuges, por qualquer razão, não se dispõe a comparecer perante o tabelião de notas.

O provimento do TJ-PE de autoria do desembargador Jones Figueiredo Alves promove a desjudicialização absoluta do divórcio e afasta, em boa hora, uma situação paradoxal, quando a falta de consenso impunha a inexorável (e desnecessária) judicialização do divórcio.

Ressalte-se, por fim, que o pedido de divórcio direto por averbação fica restrito, exclusivamente, à dissolução do vínculo, sem possibilidade de cumulação de qualquer outra providência. Outras questões, como alimentos, partilha de bens, medidas protetivas etc., devem ser judicializadas e tratadas no juízo competente, porém com a situação jurídica das partes já estabilizada e reconhecida como de pessoas divorciadas. Ou seja, a averbação do divórcio não repercute em nenhum outro direito patrimonial ou existencial. Só evita que a pessoa se veja compelida a postular uma providência judicial que não tem qualquer outra função senão a de dissolver o vínculo. Por isso, não existem riscos aos direitos do outro cônjuge que eventualmente discorde do pedido de divórcio. Da mesma forma que não há repercussões negativas para a atividade notarial, pois quem ostenta legitimidade para requerer a averbação unilateral do divórcio não poderia fazê-lo por escritura pública, à falta de anuência do outro. A competência exclusiva dos tabeliães de notas, conforme determina o artigo 7º da Lei 8.935/94, para lavrar escrituras públicas de separação e divórcio não é atingida.

O provimento, em momento algum, desloca atribuições próprias do notário para o registrador civil das pessoas naturais. A Lei 8.935/94, ao regulamentar o artigo 236 da Constituição Federal, é taxativa quando determina caber ao notário (ou tabelião de notas) “intervir nos atos e negócios jurídicos a que as partes devam ou queiram dar forma legal ou autenticidade, autorizando a redação ou redigindo os instrumentos adequados, conservando os originais e expedindo cópias fidedignas de seu conteúdo”.

O registrador civil, por sua vez, averba e dá publicidade ao ato. Ambos são entes estatais por delegação e sempre atuaram de forma harmônica no procedimento para dissolução administrativa do casamento. O tabelião, formalizando em escritura pública a vontade “comum” das partes, enquanto o registrador, tornando pública essa manifestação, averbando-a no registro próprio. A possibilidade de averbação direta, por requerimento unilateral e sem prévia escritura pública, não compromete essa harmonia, eis que a escritura jamais poderia ser lavrada nesses casos.

O provimento apenas assegura a desburocratização do procedimento, afastando, nesses casos em que o tabelião não poderia lavrar a escritura, a obrigatoriedade de intervenção do Poder Judiciário.

Em suma, qualquer restrição ao provimento denota falta de percepção com novos tempos. Em momento em que o blockchain assume cada vez mais protagonismo na vida do cidadão comum, impedir que haja declaração unilateral de divórcio é negar a natureza das coisas. O sistema mudou porque os tempos são outros. Cabe, agora, citando Harari, a decisão de insistirmos com carruagens ou aceitarmos que já existe nas ruas um carro que não necessita de motorista, sob pena de sobreviveremos à seleção natural. Alea jacta est.

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[1] Conforme explicamos a seguir, a razão de ser dessa nova modalidade de divórcio é que após a Emenda 66-2010, o divórcio passou a ser um direito potestativo de qualquer um dos cônjuges e ainda irresistível. Não há defesa possível que impeça o divórcio de ocorrer. Eventual ação de invalidação do casamento suspende o processo de divórcio. A hipótese é acadêmica e de nenhuma utilidade prática.
[2] Provimento 6/2019: Art. 1º. Indicar que qualquer dos cônjuges poderá requerer, perante o Registro Civil, em cartório onde lançado o assento do seu casamento, a averbação do seu divórcio, à margem do respectivo assento, tomando-se o pedido como simples exercício de um direito potestativo do requerente.
Parágrafo 1º. Esse requerimento, adotando-se o formulário anexo, é facultado somente àqueles que não tenham filhos de menor idade ou incapazes, ou não havendo nascituro e, por ser unilateral, entende-se que o requerente optou em partilhar os bens, se houver, a posteriori. Parágrafo 2º. O interessado deverá ser assistido por advogado ou defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do pedido e da averbação levada a efeito. Art. 2º. O requerimento independe da presença ou da anuência do outro cônjuge, cabendo-lhe unicamente ser notificado, para fins de prévio conhecimento da averbação pretendida, vindo o Oficial do Registro, após efetivada a notificação pessoal, proceder, em cinco dias, com a devida averbação do divórcio impositivo. Parágrafo Único. Na hipótese de não encontrado o cônjuge notificando, proceder-se-á com a sua notificação editalícia, após insuficientes as buscas de endereço nas bases de dados disponibilizadas ao sistema judiciário. Art. 3º. Em havendo no pedido de averbação do divórcio impositivo, cláusula relativa à alteração do nome do cônjuge requerente, em retomada do uso do seu nome de solteiro, o Oficial de Registro que averbar o ato no assento de casamento, também anotará a alteração no respectivo assento de nascimento, se de sua unidade, ou, se de outra, comunicará ao Oficial competente para a necessária anotação; em consonância com art. 41 da Resolução nº 35 do Conselho Nacional de Justiça. Art. 4º. Qualquer questão relevante de direito a se decidir, no atinente a tutelas específicas, alimentos, arrolamento e partilha de bens, medidas protetivas e de outros exercícios de direito, deverá ser tratada em juízo competente, com a situação jurídica das partes já estabilizada e reconhecida como pessoas divorciadas. Parágrafo único – As referidas questões ulteriores, poderão ser objeto de escritura pública, nos termos da Lei nº 11.441, de 04.01.2007, em havendo consenso das partes divorciadas, evitando-se a judicialização das eventuais questões pendentes.

* Mário Luiz Delgado é advogado, professor da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (Fadisp) e da Escola Paulista de Direito (EPD), doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP e especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) e membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) e do Instituto de Direito Comparado Luso Brasileiro (IDCLB).

* José Fernando Simão é advogado, diretor do conselho consultivo do IBDFAM e professor da Universidade de São Paulo e da Escola Paulista de Direito.



Fonte: Consultor Jurídico (ConJur)