Em texto anterior1 já se falou sobre a chamada legitimação de posse, instituto importante para a política de regularização fundiária urbana e que foi modificado pela lei 13.465/2017. Na ocasião, explicitaram-se as modalidades de Reurb, "apelido" dado à regularização fundiária urbana, que "abrange medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes", conforme o art. 9º da lei em questão. Assim, tem-se a Reurb-S (interesse social) e a Reurb-E (interesse específico).
A legitimação de posse já era conhecida no Direito brasileiro, pois a lei 11.977/2009 dela já cuidava. Novidade trazida em 2017, no bojo das novas diretrizes da regularização, é a chamada legitimação fundiária. Mas, de que se trata essa figura, e como se dá sua regulamentação? É o que se pretende responder na pequena série de colunas que se inicia com este artigo.
Antes de tudo, pode-se dizer que a legitimação fundiária é uma das formas de atribuição de título jurídico aos ocupantes de unidades imobiliárias ainda não formalmente integradas ao espaço urbano, justamente com o escopo de operar tal formalização. É um dos instrumentos da Reurb (art. 15, I, lei 13.465/2017), mas aplicável apenas à Reurb-S, de acordo com o art. 23, §1º da lei. As referidas unidades imobiliárias, contudo, devem ser parte de "núcleos urbanos informais consolidados", ou seja, com a marca da irreversibilidade (conforme o art. 11, III da lei 13.465/172) e existentes até 22 de dezembro de 2016.
De acordo com o art. 11, VII, a legitimação fundiária é meio "de aquisição originária do direito real de propriedade sobre unidade imobiliária objeto da Reurb". Já de acordo com o art. 23 da lei, esse instrumento (legitimação fundiária), "constitui forma originária de aquisição do direito real de propriedade conferido por ato do poder público, exclusivamente no âmbito da Reurb, àquele que detiver em área pública ou possuir em área privada, como sua, unidade imobiliária com destinação urbana, integrante de núcleo urbano informal consolidado existente em 22 de dezembro de 2016".
Nesse instrumento, "o ocupante adquire a unidade imobiliária com destinação urbana livre e desembaraçada de quaisquer ônus, direitos reais, gravames ou inscrições, eventualmente existentes em sua matrícula de origem, exceto quando disserem respeito ao próprio legitimado" (art. 23, §2º).
Como se vê, há uma grande diferença em relação à legitimação de posse, que consiste em "ato do poder público destinado a conferir título, por meio do qual fica reconhecida a posse de imóvel objeto da Reurb, conversível em aquisição de direito real de propriedade na forma desta lei, com a identificação de seus ocupantes, do tempo da ocupação e da natureza da posse" (art. 11, VI da lei 13.465/2017)
A legitimação fundiária pode contemplar tanto a unidade imobiliária sobre área privada quanto aquela existente sobre área pública. Relativamente às áreas públicas, é provável que tenha de haver, antes, a aprovação da desafetação do bem3, de modo a deixá-lo livre para a posterior regularização por meio dos instrumentos previstos em lei. Por outro lado, em se tratando de imóvel público, determina o §4º do art. 23 da lei que "(...) a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios, e as suas entidades vinculadas, quando titulares do domínio, ficam autorizados a reconhecer o direito de propriedade aos ocupantes do núcleo urbano informal regularizado por meio da legitimação fundiária".
Essa questão dos bens públicos, contudo, é tema para a próxima coluna. O que para logo se pode afirmar é que a legitimação fundiária surge com um dos instrumentos a utilizar pelo poder público, no universo de recursos integrantes de sua política urbana4.
Como já se afirmou no artigo anterior, pode-se entrever um vício de inconstitucionalidade nessa figura da legitimação fundiária, que já tem sido objeto de crítica por autores especializados, que a enxergam mesmo como um dos grandes problemas da lei 13.465/20175. Ocorre que a legitimação fundiária, ao atribuir aquisição a título originário por meio de ato discricionário do poder público, aparenta criar uma inconstitucional afronta ao direito de propriedade. Concorda-se com esse entendimento.
Além disso, pode-se também ver um caso de inconstitucionalidade na previsão de legitimação fundiária sobre unidades localizadas em áreas públicas. Consistiria tal possibilidade em uma forma de contornar a vedação constitucional à usucapião de bens públicos? É o que se pretende discutir no próximo Registralhas.
Sejam felizes. Até lá!
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1 KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. Legitimação de posse na lei 13.465/2017: ligeiras observações. Migalhas – Registralhas, 6/3/2018.
2 Art. 11. "Para fins desta lei, consideram-se: (...) III - núcleo urbano informal consolidado: aquele de difícil reversão, considerados o tempo da ocupação, a natureza das edificações, a localização das vias de circulação e a presença de equipamentos públicos, entre outras circunstâncias a serem avaliadas pelo município";
3 Cf. BARROS, Felipe Maciel P. Da (in)constitucionalidade da legitimação fundiária. Migalhas, 10 de setembro de 2018.
4 Assim BARROS, Felipe Maciel P. Op. cit.: "Por isso mesmo, o legislador restringiu o uso da legitimação fundiária aos núcleos urbanos informais comprovadamente existentes a data de 22 de dezembro de 2016, o que demonstra a preocupação de que o instrumento não represente uma carta branca para a alienação gratuita de áreas públicas, mas tão somente se preste à regularização fundiária de situações em que não exista outra opção mais adequada à solução da informalidade".
5 CARVALHO PINTO, Victor. A regularização fundiária urbana na lei 13.465/2017.
Fonte: Migalhas