A tomar por base a experiência internacional, a constituição dos fundos poderá ser uma relevante fonte de receitas para a consecução de projetos de interesse público
No último dia 10/9/18, em resposta ao trágico incidente ocorrido com o Museu Nacional, foi editada a medida provisória 851/18, que estabelece regras para a captação de recursos junto à inciativa privada, para fins de viabilizar uma nova forma de financiamento de programas, projetos e demais finalidades de interesse público.
A MP permite que sejam constituídos fundos patrimoniais (também conhecidos como endowment), com vistas à obtenção de fontes de recursos de longo prazo para o fomento de instituições sem fins lucrativos dedicadas a finalidades de interesse público, especificamente, educação, ciência, tecnologia, pesquisa, inovação, cultura, saúde, meio ambiente, assistência social e desporto. Busca-se, com isso, viabilizar novas fontes de receita para esses projetos, que não dependam do orçamento público.
Esse movimento reflete a atual disposição por parte do governo no sentido de fortalecer as captações via instrumentos de mercado de capitais. A MP faculta a atribuição da gestão destes fundos patrimoniais a uma administradora de recursos registrada na CVM, na categoria asset management. Ao viabilizar esta alternativa, a MP proporciona o acesso aos mecanismos de regras e normas de mercado previstos nas instruções e ofícios da CVM, assegurando as melhores práticas do mercado financeiro no gerenciamento dos recursos destes fundos.
Os fundos patrimoniais são reconhecidos internacionalmente como um dos principais expedientes voltados para o financiamento de instituições da sociedade civil, as quais, através destes instrumentos, podem formalizar os mecanismos de doações pecuniárias e não pecuniárias e sistematizar os procedimentos de destinação dos recursos captados.
Esse novo instrumento, trazido pela MP, poderá constituir, uma nova fonte de recursos, por exemplo, às denominadas “PPP sociais”, destinadas a concretizar políticas públicas. Os recursos advindos desses fundos patrimoniais poderão viabilizar concessões administrativas, por exemplo, para a construção de escolas, reformas de universidades ou reestruturação de hospitais, abrindo uma nova frente de captação aos recursos provenientes das doações de pessoas físicas ou jurídicas privadas, destravando uma série de investimentos de interesse social hoje precipuamente dependentes do orçamento público.
Para assegurar que os investimentos configurem recursos de longo prazo, a MP estabelece que o fundo patrimonial deverá realizar investimentos voltados à preservação do valor dos recursos e que constitua fonte regular e estável para fins de fomento das finalidades de interesse público. O patrimônio do fundo deverá ser segregado contábil, administrativa e financeiramente dos instituidores do fundo, da instituição apoiada e, se o caso, da organização responsável pela execução dos programas e projetos. A MP também possui exigências no tocante à necessidade de mecanismos internos de auditoria e compliance, dentre outras regras mínimas para a constituição e organização do fundo.
A composição patrimonial do fundo poderá advir de fontes diversas (artigo 13), inclusive de Estados estrangeiros e organismos internacionais. No entanto, há expressa vedação à transferência de recursos ao fundo por parte da Administração Pública direta, autárquica, fundacional e de empresas estatais dependentes (art. 17), e os fundos não contarão com qualquer garantia do Poder Público. Essas regras evitam a oneração do erário para a constituição ou manutenção do fundo – o que seria diametralmente oposto à finalidade que se intenta com a normativa, de suplementar as receitas destinadas a esses projetos com recursos outros que não públicos.
A MP prevê mecanismos de incentivo à doação privada para a constituição do fundo. Nesse sentido, as doações financeiras e aportes iniciais a fundo voltado, especificamente, a atividade cultural será considerada equiparada a projeto cultural, para os fins dos incentivos previstos na lei 8.313/91 (Lei Rouanet). Ademais, a MP permite que o fundo seja beneficiário de doação derivada de obrigação assumida em termo de ajuste de conduta, acordos de leniência e colaboração premiada.
Três são as modalidades de doação que poderão ser recebidas pelos fundos, se previstas no respectivo ato constitutivo: (i) doação permanente não restrita, pela qual o principal passará a compor o patrimônio do fundo, vedado o seu resgate; (ii) doação permanente restrita de propósito específico, nos casos em que o rendimento de uma doação permanente seja destinada a um programa ou projeto específico, previamente definido no instrumento de doação, e (iii) doação de propósito específico, em que o recurso é destinado a um programa ou projeto específico, devendo integrar o patrimônio do fundo, porém com a possibilidade de resgate do principal nos termos definidos no instrumento de doação.
O repasse de recursos à instituição apoiada pelo fundo deve ser realizado por meio de dois instrumentos jurídicos. Primeiramente, deverá ser firmado um instrumento de parceria entre a gestora do fundo e a instituição apoiada, para a formação do vínculo de cooperação e com força de título executivo extrajudicial. Esse instrumento de parceria deverá ser complementado pela celebração dos termos de execução de programas, projetos e demais finalidades, a partir dos quais serão geradas as obrigações de dispêndio. A normativa veda a utilização dos recursos do fundo para fins de pagamento de despesas correntes de instituições públicas apoiadas, exceto nos casos indicados no art. 22 da MP. Ademais, a MP afasta a incidência da lei 8.666/93 (lei de contratações públicas), da lei 13.019/14 (lei das parcerias com organizações da sociedade civil) e lei 9.790/99 (Lei das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP) tanto aos instrumentos de parceria quanto aos termos de execução.
A MP prevê certos mecanismos para a gestão do instrumento de parceria ou dos termos de execução, com a possibilidade de expedição de recomendações recíprocas entre as partes envolvidas, para fins de sanar irregularidades ou descumprimentos. Em cenários mais graves, poderá ser determinada a suspensão temporária do termo de execução, ou mesmo o encerramento do termo ou da parceria.
Na eventualidade de dissolução ou liquidação da organização gestora do fundo patrimonial, eventual patrimônio líquido remanescente não será incorporado ao erário, mas, diversamente, deverá ser destinado a organização de fundo patrimonial com finalidade de interesse público similar, de acordo com as regras do respectivo estatuto. A previsão mitiga eventual desvirtuamento na constituição do fundo, na medida em que, junto com outras previsões da MP, busca garantir o distanciamento entre o patrimônio do fundo e o erário.
A tomar por base a experiência internacional, a constituição dos fundos poderá ser uma relevante fonte de receitas para a consecução de projetos de interesse público. Note-se, quanto a isso, que o sucesso na utilização de endowment por universidades e museus em países estrangeiros foi, inclusive, um dos fundamentos da exposição de motivos da MP. No Brasil, a bandeira já vinha sendo levantada por parte de universidades (a exemplo da Escola Politécnica da USP) e, mais recentemente, pelo BNDES1, para a área cultural.
A regulamentação dos fundos patrimoniais pela MP certamente assegura a segurança jurídica necessária a dar maior atenção a esse importante instrumento. A grande demanda por investimentos em projetos de interesse público no país assegura um amplo potencial para a utilização dos fundos patrimoniais.
* Angélica Petian é doutora em Direito. Sócia do Vernalha Guimarães e Pereira Advogados.
* Guilherme Guerra é advogado e economista. Sócio do Vernalha Guimarães e Pereira Advogados.
* Regina Rillo é especialista em Direito Administrativo e em Administração. Sócia do Vernalha Guimarães e Pereira Advogados.
Fonte: Migalhas