O estudo sistemático do Direito Financeiro nos permite navegar de forma transversal por diversas áreas do conhecimento jurídico, como constatei dias atrás, quando me deparei com uma consulta muito interessante, envolvendo aspectos de Direito Administrativo e Processual Civil que requeriam uma análise jusfinanceira. Compartilho com os leitores essas ideias para debate acerca da inafastabilidade do uso de precatórios para pagamento de sentenças desapropriatórias.
O ponto central é saber se toda decisão judicial transitada em julgado contra a Fazenda Pública, que contenha obrigação de dar, deve ser paga através de precatórios. A primeira resposta que vem à mente é que sim, confirmando a necessidade de precatórios para cumprimento dessa decisão de pagar. A principal norma de regência é o artigo 100 da Constituição[1], ladeado pelo artigo 534 e seguintes e 910 do CPC.
Porém, será que esse artigo da Constituição se aplica a todas as decisões judiciais que obrigam a desembolsos por parte do Tesouro Público? Esse é o ponto a ser investigado.
Observe-se a seguinte situação que envolve o Direito Administrativo: um imóvel é desapropriado sob o argumento da utilidade pública, a fim de permitir que o Estado o utilize em alguma finalidade de interesse público.
A norma de regência dessa situação é o artigo 5º da Constituição, que estabelece dentre os direitos e garantias fundamentais, em seu inciso XXIV, que “a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição”.
As duas palavras acima grifadas, justa e prévia, possuem significados específicos, que podem até ser fluídos e imprecisos em alguns sentidos, mas possuem um núcleo central de seus termos.
Justo, sob a ótica do direito positivo, é aquilo que tiver sido determinado por decisão do Poder Judiciário, goste-se ou não do que tiver sido decidido. Uma vez transitada em julgado, será considerada justa a decisão proferida por juiz competente e obedecidas as demais normas atinentes à matéria (contraditório, ampla defesa etc.). Pode-se até discutir no âmbito acadêmicoa justiça do que foi decidido, mas, dentro do sistema jurídico de direito positivo, a decisão que tiver transitado em julgado será considerada justa.
Prévia significa antecedente, algo que ocorre antes de algum ato ou fato. No contexto normativo acima transcrito, do artigo 5º XXIV, CF, significa que o pagamento da indenização deve ser antecedente à efetivação da desapropriação.
Observe-se que se trata de um direito fundamental inscrito no capítulo específico da Constituição e que reflete tanto o direito individual de propriedade como o direito da sociedade, através do Estado, de retirar do âmbito individual esse direito de propriedade, mediante a condição de indenização em dinheiro, de forma prévia e justa. Não se trata de remuneração do capital, mas de indenização em razão da perda de propriedade — tanto que não incide imposto sobre a renda em razão da indenização obtida em decorrência desse fato[2].
A leitura desses dois requisitos constitucionais aponta para a afirmação de que o valor que advier da decisão judicial transitada em julgado, que corresponderá ao montante justo, sob a ótica do direito positivo, deverá ser integralmente pago de forma prévia à imissão na posse do imóvel desapropriado. Leia-se com destaque: imissão definitiva na posse. Esse destaque é importantíssimo na análise, pois a norma constitucional inscrita no artigo 5º, XXIV trata da indenização, a qual só se completará com o pagamento completo, gerador da imissão definitiva na posse.
Em 2003, o STF exarou a Súmula 652, validando a recepção constitucional[3]do artigo 15, parágrafo 1º desse decreto-lei de 1941, época da Ditadura Vargas, o qual permite que, independentemente da citação do proprietário, o juiz determine a imissão provisória do ente público na posse do bem, desde que seja alegada urgência e depositada a quantia arbitrada[4]. Que quantia é essa? O parágrafo 1º, “c”, do artigo 15 estabelece que será “o valor cadastral do imóvel, para fins de lançamento do imposto territorial, urbano ou rural”, caso tenha sido atualizado no ano fiscal imediatamente anterior; caso não tenha sido, o juiz levará tal valor em consideração na sua análise (inciso “d”). Existe farta jurisprudência do STJ tratando da matéria.
O depósito dessa quantia pelo ente público é considerado o pagamento prévio da indenização, podendo o proprietário do bem desapropriado levantar até 80% desse depósito, mesmo que discorde da avaliação e decida impugná-la judicialmente (artigo 33, DL 3365/41). Caso o expropriado concorde com o registro da propriedade na matrícula do imóvel, poderá levantar até 100% do montante depositado e prosseguir questionando em juízo o preço ofertado (artigo 34-A).
O fato é que existem diversas situações aqui envolvidas, pois uma coisa é a imissão provisória na posse do bem, e outra é o pagamento do valor justo, decorrente do que tiver sido judicialmente estabelecido. O Decreto-lei 3.365/41 regula a questão da posse, do depósito e de seu levantamento, mas não a do pagamento integral, que decorrerá da fixação do justo valor da indenização, que surgirá após a decisão transitada em julgado, caso a quantia depositada seja contestada. E a quitação só ocorrerá após o pagamento desse valor, completando a indenização e consolidando a posse (definitiva) do bem, como bem relatado pelo ministro Fux[5], quando ainda no STJ, no REsp 837.862.
Isso nos faz retornar ao artigo 100 da Constituição. Será que deve ser realizado através do sistema de precatórios o pagamento decorrente dessa decisão judicial transitada em julgado que determinou o justo preço do bem desapropriado, superior ao montante depositado, o qual, presumivelmente, já tenha sido levantado pelo expropriado quando ocorreu a imissão provisória na posse?
Como exposto, em contraponto ao artigo 100, a atual Constituição estabelece a propriedade dentre os direitos e garantias individuais (artigo 5º, caput) e o pagamento de prévia e justa indenização em dinheiro no caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública. Ou seja, a perda da propriedade só pode ocorrer havendo prévia e justa indenização em dinheiro. E, sendo prévia, não se há de falar da adoção do sistema de precatórios, que transforma o sistema de pagamentos para uma fase posterior, descartando a norma estabelecida no artigo 5º, XXIV, CF.
Não parece se estar defronte a uma relativização de direitos fundamentais, própria de uma leitura de Robert Alexy, nem do uso do velho brocardo latino de que ninguém deve se beneficiar de sua própria torpeza, que foi muito bem analisado por Ronald Dworkin. O que se tem à frente é o Direito Constitucional brasileiro lido de forma sistêmica, de modo a obter sua compreensão holística, e não em fatias (isto é, isoladamente, cada artigo sem conexão com os demais). Se for lido apenas o artigo 100, CF, todas as decisões transitadas em julgado que contenham obrigação de pagar devem ser objeto do sistema de precatórios, mas isso invalidará o direito fundamental que rege o pagamento das indenizações em razão das desapropriações fundadas em necessidade ou utilidade pública, constante do artigo 5º, XXIV, CF.
No âmbito tributário, existem também bons exemplos dessa natureza. O artigo 170 do CTN[6] prevê a possibilidade de compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo contra a Fazenda Pública, desde que haja previsão legal. Mesmo havendo trânsito em julgado, o credor/contribuinte poderá se valer de compensação tributária e não se atrelar ao sistema de precatórios. A Instrução Normativa 1.717/17 da Receita Federal do Brasil aponta nesse sentido ao estabelecer normas sobre restituição, compensação, ressarcimento e reembolso, no âmbito das receitas tributárias federais, determinando seu artigo 75 que só os créditos transitados em julgado podem se valer da compensação, como uma alternativa à sistemática do artigo 100 da Constituição. É cediço na jurisprudência do STJ o reconhecimento do direito do contribuinte em optar por compensação ou repetição de indébito no curso da ação, podendo até mesmo ocorrer em liquidação de sentença, após seu trânsito em julgado. Vê-se isso no AgRg no REsp 1.086.243/SC 2008/0192066-5, min. Luiz Fux, quando ainda julgava no STJ.
Logo, também por esse aspecto se demonstra que a regra do artigo 100 da Constituição não se constitui em um regime absoluto, pois existem diversas alternativas dentro do sistema de direito positivo brasileiro ao uso de precatórios, mesmo sendo o caso de decisões judiciais transitadas em julgado que prevejam obrigações de pagar contra a Fazenda Pública.
Não faltará quem afirme que se trata de uma injustiça, pois outras decisões que envolvem partes hipossuficientes, como as que determinam o pagamento de indenizações decorrentes de infrações a direitos de servidores públicos, por exemplo, permanecerão sujeitas ao regime de precatórios. Reconheço a injustiça e me solidarizo com os injustiçados, mas ela deve ser resolvida no âmbito do direito positivo, alterando as normas que regem a matéria. Nesse caso, a crítica acadêmica deve ser encaminhada ao Poder Legislativo, para as devidas modificações normativas (eis a razão pela qual se deve olhar com redobrada atenção para as eleições parlamentares, além daquelas para o Poder Executivo).
A solução do pagamento integral da indenização em razão de desapropriação por necessidade ou utilidade pública, após a decisão transitada em julgado, sem observância do regime de precatórios, não é incompatível com o artigo 100, CF nem com as normas de Direito Financeiro. Ao contrário, corresponde à realização dos direitos fundamentais prescritos pela própria Constituição.
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[1] Atual redação do caput do artigo 100: Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.
[2] STJ, REsp 1.116.460, sob a sistemática dos recursos repetitivos, Luiz Fux: “5. Deveras, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou-se no sentido da não-incidência da exação sobre as verbas auferidas a título de indenização advinda de desapropriação, seja por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social, porquanto não representam acréscimo patrimonial”. Súmula 39/TFR: “Não está sujeita ao Imposto de Renda a indenização recebida por pessoa jurídica, em decorrência de desapropriação amigável ou judicial”. CARF, Súmula n° 42: “Não incide imposto sobre a renda das pessoas físicas sobre os valores recebidos a título de indenização por desapropriação”.
[3] Súmula 652: Não contraria a Constituição o art. 15, § 1º, do Decreto-lei 3365/1941 (Lei da desapropriação por utilidade pública).
[4] Art. 15. Se o expropriante alegar urgência e depositar quantia arbitrada de conformidade com o art. 685 do Código de Processo Civil, o juiz mandará imiti-lo provisoriamente na posse dos bens.
[5] Destaca-se o seguinte trecho da ementa: Deveras, o expropriante obterá a propriedade do bem somente após o pagamento da justa indenização (CF, art. 5º, XXIV), fixada pelo juízo, quando apurado o real valor do bem desapropriado.
[6] Art. 170. A lei pode, nas condições e sob as garantias que estipular, ou cuja estipulação em cada caso atribuir à autoridade administrativa, autorizar a compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo contra a Fazenda pública.
* Fernando Facury Scaff é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.
Fonte: Consultor Jurídico (ConJur)